"Maldito aquele que faz com negligência a obra do Senhor!"(Jr 48,10).
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Salvifici Doloris
Carta Apostólica
SALVIFICI DOLORIS
Do Sumo
Pontífice João Paulo II
Aos Bistos, aos Bispos, aos Sacerdotes, às Famílias Religiosas
e aos Fiéis da Igreja Católica
Sobre o Sentido Cristão do Sofrimento Humano
Veneráveis Irmãos no Episcopado e amados Irmãos e Irmãs
em Cristo:
I - INTRODUÇÃO
1. «Completo na minha carne — diz o
Apóstolo São Paulo, ao explicar o valor salvífico do sofrimento — o que falta
aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja».
1(Cl 1,24)
Estas palavras parecem encontrar-se
no termo do longo caminho que se desenrola através do sofrimento inserido na
história do homem e iluminado pela Palavra de Deus. Elas têm o valor de uma como
que descoberta definitiva, que é acompanhada pela alegria: «Alegro-me nos
sofrimentos suportados por vossa causa». 2(Cl 1,24).
Esta alegria provém da descoberta
do sentido do sofrimento; e muito embora Paulo de Tarso, que escreve estas
palavras, participe de um modo personalíssimo nessa descoberta, ela é válida ao
mesmo tempo para os outros. O Apóstolo comunica a sua própria descoberta e
alegra-se por todos aqueles a quem ela pode servir de ajuda — como o ajudou a
ele — para penetrar no sentido salvífico do sofrimento.
2. O tema do sofrimento —
precisamente sob este ponto de vista do sentido salvífico — parece estar
integrado profundamente no contexto do Ano da Redenção, o Jubileu extraordinário
da Igreja; e também esta circunstância se apresenta de molde a favorecer
diretamente uma maior atenção a dispensar a tal tema exatamente durante este
período.
Mas, prescindindo deste fato, trata-se de um tema universal, que
acompanha o homem em todos os quadrantes da longitude e da latitude terrestre;
num certo sentido, coexiste com ele no mundo; e por isso, exige ser
constantemente retomado. Ainda que São Paulo tenha escrito na Carta aos Romanos
que «toda a criação tem gemido e sofrido as dores do parto, até ao presente», 3(Rm
8,22) e ainda que os sofrimentos do mundo dos animais sejam bem conhecidos e
estejam próximos ao homem, aquilo que nós exprimimos com a palavra «sofrimento» parece entender particularmente algo essencial à natureza humana.
É
algo tão profundo como o homem, precisamente porque manifesta a seu modo aquela
profundidade que é própria do homem e, a seu modo, a supera. O sofrimento parece
pertencer à transcendência do homem; é um daqueles pontos em que o homem está,
em certo sentido, «destinado» a superar-se a si mesmo; e é chamado de modo
misterioso a fazê-lo.
3. Se o tema do sofrimento deve ser
tratado de modo especial no contexto do Ano Santo da Redenção, isso sucede,
primeiro que tudo, porque a Redenção se realizou mediante a Cruz de
Cristo, ou seja, pelo seu sofrimento. Ao mesmo tempo, no ano da
Redenção há que repensar a verdade expressa na Encíclica Redemptor Hominis:
em Cristo «cada um dos homens se torna o caminho da Igreja». (4)
Pode
dizer-se que o homem se torna caminho da Igreja de modo particular quando o
sofrimento entra na sua vida. Isso acontece, como é sabido, em diversos momentos
da vida; verifica-se de diversas maneiras e assume dimensões diferentes; mas, de
uma forma ou de outra, o sofrimento parece ser, e é mesmo, quase inseparável
da existência terrena do homem.
Dado, pois, que o homem no decorrer
da sua vida terrena trilha, de um modo ou de outro, o caminho do sofrimento, a
Igreja deveria, em todos os tempos — e talvez de um modo especial no Ano da
Redenção — encontrar-se com o homem precisamente neste caminho. A Igreja, que
nasce do mistério da Redenção na Cruz de Cristo, tem o dever de procurar o
encontro com o homem, de modo particular no caminho do seu sofrimento. É em
tal encontro que o homem «se torna o caminho da Igreja»; e este é um dos
caminhos mais importantes.
4. Daqui tem a sua origem também a
presente reflexão, precisamente neste Ano da Redenção: a reflexão sobre o
sofrimento. O sofrimento humano suscita compaixão, inspira também
respeito e, a seu modo, intimida. Nele, efetivamente, está contida a
grandeza de um mistério específico.
Este respeito particular por todo e qualquer
sofrimento humano deve ficar assente no princípio de quanto vai ser explanado a
seguir, que promana da necessidade mais profunda do coração, bem
como de um imperativo da fé. Estes dois motivos parecem aproximar-se
particularmente um do outro e unir-se entre si, quanto ao tema do sofrimento: a
necessidade do coração impõe-nos vencer a timidez; e o imperativo da fé —
formulado, por exemplo, nas palavras de São Paulo citadas no início —
proporciona o conteúdo, em nome e em virtude da qual nós ousamos tocar naquilo
que parece ser tão intangível em cada um dos homens; efetivamente, o homem no
seu sofrimento permanece um mistério intangível.
II - O MUNDO DO SOFRIMENTO HUMANO
5. Se bem que na sua dimensão
subjetiva, como fato pessoal, encerrado no concreto e irrepetível íntimo do
homem, o sofrimento pareça ser algo quase inefável e não comunicável, talvez
nenhuma outra coisa exija ao mesmo tempo tanto como ele — na sua «realidade objetiva» — ser tratada, meditada e concebida, dando ao problema uma forma
explícita; e daí, que a seu respeito se levantem questões de fundo e que para
estas se procurem as respostas. Não se trata aqui, como se verá, somente de
fazer uma descrição do sofrimento. Existem outros critérios, que estão para além
da esfera da descrição, dos quais devemos lançar mão quando queremos penetrar no
mundo do sofrimento humano.
A medicina, enquanto ciência
e, conjuntamente, como arte de curar, descobre no vasto terreno dos sofrimentos
do homem o seu setor mais conhecido; ou seja, aquele que é identificado
com maior precisão e, correlativamente, contrabalançado pelos métodos do «reagir» (isto é, da terapia). Contudo, isso é apenas um setor. O campo do
sofrimento humano é muito mais vasto, muito mais diversificado e mais pluridimensional. O homem sofre de diversas maneiras, que nem sempre são
consideradas pela medicina, nem sequer pelos seus ramos mais avançados. O
sofrimento é algo mais amplo e mais complexo do que a doença e, ao mesmo
tempo, algo mais profundamente enraizado na própria humanidade. É-nos dada uma
certa idéia quanto a este problema pela distinção entre sofrimento físico e
sofrimento moral.
Esta distinção toma como fundamento a dupla dimensão do ser
humano e indica o elemento corporal e espiritual como o imediato ou direto
sujeito do sofrimento. Ainda que se possam usar, até certo ponto, como sinônimas
as palavras «sofrimento» e «dor», o sofrimento físico dá-se quando,
seja de que modo for, «dói» o corpo; enquanto que o sofrimento moral é
«dor da alma». Trata-se, de fato, da dor de tipo espiritual e não apenas da
dimensão «psíquica» da dor, que anda sempre junta tanto com o sofrimento
moral, como com o sofrimento físico. A amplidão do sofrimento moral e a
multiplicidade das suas formas não são menores do que as do sofrimento físico;
mas, ao mesmo tempo, o primeiro apresenta-se como algo mais difícil de
identificar e de ser atingido pela terapia.
6. A Sagrada Escritura é um grande
livro sobre o sofrimento. Do Antigo Testamento fazemos menção apenas de
alguns exemplos de situações que patenteiam as marcas do sofrimento; e, em
primeiro lugar, do sofrimento moral: o perigo de morte; (5) a morte dos próprios
filhos (6) e especialmente a morte do filho primogênito e único; (7) e depois
também: a falta de descendência; (8) a saudade da pátria; (9) a perseguição e a
hostilidade do meio ambiente;(10) o escárnio e a zombaria em relação a quem
sofre; (11) a solidão e o abandono; (12) e ainda outros, como: os remorsos de
consciência; (l3) a dificuldade em compreender a razão por que os maus prosperam
e os justos sofrem; (l4) a infidelidade e a ingratidão da parte dos amigos e
vizinhos; (15) e, finalmente, as desventuras da própria nação. (16)
O Antigo Testamento, considerando o
homem como um «conjunto» psicofísico, associa freqüentemente os
sofrimentos «morais» à dor de determinadas partes do organismo: dos ossos,(17)
dos rins, (18) do fígado, (19) das vísceras (20) e do coração. (21) Não se pode
negar, efetivamente, que os sofrimentos morais têm também uma componente «física», ou somática, e que
freqüentemente se refletem no estado geral do
organismo.
7. Como se vê pelos exemplos
referidos, na Sagrada Escritura encontramos um vasto elenco de situações
dolorosas, por diversos motivos, para o homem. Este elenco diversificado não
esgota, certamente, tudo aquilo que sobre o tema do sofrimento já disse e
constantemente repete o livro da história do homem (que é prevalentemente
um «livro não escrito»); e menos ainda o que disse o livro da história da
humanidade, lido através da história de cada homem.
Pode-se dizer que o homem sofre,
quando ele experimenta um mal qualquer. A relação entre sofrimento e mal,
no vocabulário do Antigo Testamento, é posta em evidência como identidade. Com
efeito, este vocabulário não possuía uma palavra específica para designar o «sofrimento»; por isso, definia como
«mal» tudo aquilo que era sofrimento».
(22) Somente a língua grega — e, conjuntamente, o Novo Testamento (e as versões
gregas do Antigo) — se serve do verbo «~am sou afetado por..., experimento uma
sensação, sofro»; e graças a este termo o sofrimento já não é diretamente
identificável com o mal (objetivo), mas exprime uma situação na qual o homem
sente o mal e, sentindo-o, torna-se sujeito de sofrimento. Este, de fato,
possui ao mesmo tempo caráter ativo e passivo (de «patior»).
Mesmo quando o homem se provoca por si próprio um sofrimento, quando é autor do
mesmo, esse sofrimento permanece como algo passivo na sua essência metafísica.
Isto, contudo, não quer dizer que o
sofrimento em sentido psicológico não seja assinalado por uma «atividade»
específica. Há, de fato, uma «atividade» múltipla e subjetivamente
diferenciada de dor, de tristeza, de desilusão, de abatimento ou, até, de
desespero, conforme a intensidade do sofrimento, a sua profundidade e,
indiretamente, conforme toda a estrutura do sujeito que sofre e a sua
sensibilidade específica. No âmago daquilo que constitui a forma psicológica do
sofrimento encontra-se sempre uma experiência do mal, por motivo do qual
o homem sofre.
Assim, a realidade do sofrimento
levanta uma pergunta quanto à essência do mal: o que é o mal?
Esta pergunta parece inseparável,
num certo sentido, do tema do «sofrimento». A resposta cristã neste ponto é
diversa daquela que é dada por certas tradições culturais e religiosas, para as
quais a existência é um mal de que é necessário libertar-se. O Cristianismo
proclama que a existência é essencialmente um bem e o bem daquilo que
existe; professa a bondade do Criador e proclama o bem das criaturas.
O homem
sofre por causa do mal, que é uma certa falta, limitação ou distorção do bem.
Poder-se-ia dizer que o homem sofre por causa de um bem do qual não
participa, do qual é, num certo sentido, excluído, ou do qual ele próprio se
privou. Sofre em particular quando «deveria» ter participação num determinado
bem — segundo a ordem normal das coisas — e não a tem.
Por conseguinte, no conceito cristão
a realidade do sofrimento explica-se por meio do mal que, de certa maneira, está
sempre em referência a um bem.
8. O sofrimento humano constitui em
si próprio como que um «mundo» específico, que existe juntamente com o
homem, que surge nele e passa, ou então que as vezes não passa, mas se consolida
e aprofunda nele. Este mundo do sofrimento, abrangendo muitos, numerosíssimos
sujeitos, existe por assim dizer na dispersão. Cada um dos homens,
mediante o seu sofrimento pessoal, por um lado constitui só uma pequena parte
desse «mundo»; mas, ao mesmo tempo, esse «mundo» está nele como uma entidade
finita e irrepetível.
A par disso existe também a dimensão inter-humana e
social. O mundo do sofrimento possui como que uma sua própria compacidade.
Os homens que sofrem tornam-se semelhantes entre si por efeito da analogia da
sua situação, da provação do destino partilhado, ou da necessidade de
compreensão e de cuidados; mas sobretudo, talvez, por causa do persistente
interrogar-se sobre o sentido do sofrimento. Embora o mundo do sofrimento exista
na dispersão, contém em si, ao mesmo tempo, um singular desafio à comunhão e
à solidariedade. Procuraremos dar ouvidos também a este apelo na presente
reflexão.
Ao pensar no mundo do sofrimento e
no seu significado pessoal e ao mesmo tempo coletivo, não se pode, enfim,
deixar de notar o fato de que este mundo como que se adensa de modo
particular nalguns períodos de tempo e em certos espaços da existência
humana. É o que acontece, por exemplo, nos casos de calamidades naturais, de
epidemias, catástrofes e cataclismos, ou de diversos flagelos sociais; pense-se,
entre outros, no caso de um período de má colheita e relacionado com isso — ou
por diversas outras causas — no flagelo da fome.
Pensemos, por fim, na guerra.
Refiro-me a ela de modo especial. E falo das últimas duas guerras mundiais;
destas foi a segunda que fez uma ceifa muito maior de vidas e uma acumulação
mais penosa de sofrimentos humanos. E acontece que a segunda metade do nosso
século — como que em proporção com os erros e transgressões da nossa
civilização contemporânea — contém em si por sua vez uma ameaça tão horrível de
guerra nuclear, que não podemos pensar neste período senão em termos de
acumulação incomparável de sofrimentos, que vão até à possível
autodestruição da humanidade.
Deste modo, aquele mundo de sofrimento, que afinal
tem o seu sujeito em cada homem, parece transformar-se na nossa época — talvez
mais do que em qualquer outro momento — num particular «sofrimento do mundo»:
de um mundo que se acha, como nunca, transformado pelo progresso operado pelo
homem; e está ao mesmo tempo, como nunca, em perigo por causa dos erros e culpas
do mesmo homem.
III - EM BUSCA DA RESPOSTA
À PERGUNTA SOBRE O SENTIDO DO SOFRIMENTO
9. No fundo de cada sofrimento
experimentado pelo homem, como também na base de todo o mundo dos sofrimentos,
aparece inevitavelmente a pergunta: porquê? É uma pergunta acerca da
causa, da razão e também acerca da finalidade (para quê?); trata-se
sempre, afinal, de uma pergunta acerca do sentido. Esta não só acompanha o
sofrimento humano, mas parece até determinar o seu conteúdo humano, o que faz
com que o sofrimento seja propriamente sofrimento humano.
A dor, como é óbvio, em especial a
dor física, encontra-se amplamente difundida no mundo dos animais. Mas só o
homem, ao sofrer, sabe que sofre e se pergunta o porquê; e sofre de um modo
humanamente ainda mais profundo se não encontra uma resposta satisfatória.
Trata-se de uma pergunta difícil, como é também difícil uma outra muito
afim, ou seja, a que diz respeito ao mal. Porquê o mal? Porquê o mal no mundo?
Quando fazemos a pergunta desta maneira fazemos sempre também, ao menos em certa
medida, uma pergunta sobre o sofrimento.
Ambas as perguntas são difíceis,
quando o homem as faz ao homem, os homens aos homens, como também quando o homem
as apresenta a Deus. Com efeito, o homem não põe esta questão ao mundo,
ainda que muitas vezes o sofrimento lhe provenha do mundo; mas põe-na a Deus,
como Criador e Senhor do mundo.
É bem sabido que, quando se
calcorreia o terreno desta pergunta, se chega não só a múltiplas frustrações e
conflitos nas relações do homem com Deus, mas sucede até chegar-se à própria
negação de Deus. Se, efetivamente, a existência do mundo como que abre o
olhar da alma à existência de Deus, à sua sapiência, poder e magnificência,
então o mal e o sofrimento parecem ofuscar esta imagem, às vezes de modo
radical; e isto mais ainda olhando ao quotidiano com a dramaticidade de tantos
sofrimentos sem culpa e de tantas culpas sem pena adequada. Esta circunstância,
portanto — mais do que qualquer outra, talvez — indica quanto é importante a
pergunta sobre o sentido do sofrimento e com que acuidade se devam tratar,
quer a mesma pergunta, quer as possíveis respostas a dar-lhe.
10. O homem pode dirigir tal
pergunta a Deus, com toda a comoção do seu coração e com a mente cheia de
assombro e de inquietude; e Deus espera por essa pergunta e escuta-a, como vemos
na Revelação do Antigo Testamento. A pergunta encontrou a sua expressão mais
viva no Livro de Jó.
É conhecida a história deste homem
justo que, sem culpa nenhuma da sua parte, é provado com inúmeros sofrimentos.
Perde os seus bens, os filhos e filhas e, por fim, ele próprio é atingido por
uma doença grave. Nesta situação horrível, apresentam-se em sua casa três velhos
amigos que procuram — cada um com palavras diferentes — convencê-lo de que, para
ter sido atingido por tão variados e tão terríveis sofrimentos, deve ter
cometido alguma falta grave. Com efeito, dizem-lhe eles, o sofrimento atinge
o homem sempre como pena por uma culpa; é mandado por Deus, que é absolutamente
justo e age com motivações que são da ordem da justiça. Dir-se-ia que os velhos
amigos de Jó querem não só convencê-lo da justeza moral do mal, mas, de
algum modo, procuram defender, aos seus próprios olhos, o sentido moral
do sofrimento. Este, a seu ver, pode ter sentido somente como pena pelo pecado;
e portanto, exclusivamente no plano da justiça de Deus, que paga o bem com o bem
e o mal com o mal.
O ponto de referência, neste caso, é
a doutrina expressa noutros escritos do Antigo Testamento, que nos apresentam o
sofrimento como castigo infligido por Deus pelos pecados dos homens. O Deus da
Revelação é Legislador e Juiz em plano tão elevado, que nenhuma
autoridade temporal o pode alcançar. O Deus da Revelação, efetivamente,
primeiro que tudo é o Criador, do qual provém, juntamente com a
existência, o bem que é essencial à criação. Por conseguinte, a violação
consciente e livre deste bem, por parte do homem, é não só transgressão da lei,
mas também ofensa ao Criador, que é o Primeiro Legislador. Tal transgressão tem
caráter de pecado no sentido próprio, isto é, no sentido bíblico e teológico
desta palavra. Ao mal moral do pecado corresponde o castigo, que garante
a ordem moral no mesmo sentido transcendente em que esta ordem foi estabelecida
pela vontade do Criador e Supremo Legislador. Daqui se segue também uma das
verdades fundamentais da fé religiosa, baseada igualmente na Revelação; ou seja,
que Deus é juiz justo, que premeia o bem e castiga o mal: «Vós, Senhor, sois
justo em tudo o que fizestes; todas as vossas obras são verdadeiras, retos os
vossos caminhos, todos os vossos juízos se baseiam na verdade, e tomastes
decisões conforme a verdade em tudo o que fizestes que nos sobreviesse e à
cidade santa dos nossos pais, Jerusalém. Sim, em verdade e justiça nos
infligistes todos estes castigos por causa de nossos pecados». (23)
Na opinião manifestada pelos amigos
de Jó exprime-se uma convicção que também se encontra na consciência moral da
humanidade: a ordem moral objetiva exige uma pena para a transgressão, para o
pecado e para o crime. Sob este ponto de vista, o sofrimento aparece como um «mal justificado». A convicção daqueles que explicam o sofrimento como castigo
pelo pecado apoia-se na ordem da justiça, e isso corresponde à opinião expressa
por um dos amigos de Jó: «Pelo que vi, aqueles que cultivam a iniquidade e os
que semeiam a maldade também as colhem». 24(Jó 4,8)
11. Jó, no entanto, contesta a
verdade do princípio que identifica o sofrimento com o castigo do pecado; e faz
isso baseando-se na própria situação pessoal. Ele, efetivamente, tem
consciência de não ter merecido semelhante castigo; e, por outro lado, vai
expondo o bem que praticou durante a sua vida. Por fim, o próprio Deus desaprova
os amigos de Jó pelas suas acusações e reconhece que Jó não é culpado. O seu
sofrimento é o de um inocente: deve ser aceite como um mistério, que o homem não
está em condições de entender totalmente com a sua inteligência.
O Livro de Jó não abala as bases da
ordem moral transcendente, fundada sobre a justiça, como são propostas em toda a
Revelação, na Antiga e na Nova Aliança. Contudo este Livro demonstra ao mesmo
tempo, com toda a firmeza, que os princípios desta ordem não podem ser aplicados
de maneira exclusiva e superficial. Se é verdade que o sofrimento tem um sentido
como castigo, quando ligado à culpa, já não é verdade que todo o
sofrimento seja conseqüência da culpa e tenha caráter de castigo. A figura
do justo Jó é disso prova convincente no Antigo Testamento.
A revelação,
palavra do próprio Deus, põe o problema do sofrimento do homem inocente com toda
a clareza: o sofrimento sem culpa. Jó não foi castigado; não havia razão para
lhe ser infligida uma pena, não obstante ter sido submetido a uma duríssima
prova. Da introdução do Livro deduz-se que Deus condescendeu com esta provação,
em seguida à provocação de Satanás. Este, de fato, impugnou diante do Senhor a
justiça de Jó: «Acaso teme Jó a Deus em vão? ... Abençoastes os seus
empreendimentos e os seus rebanhos expandem-se sobre a terra. Mas estendei a
vossa mão e tocai nos seus bens; juro que vos amaldiçoará na vossa face». 25(Jó
1,9-11)
Se o Senhor permite que Jó seja provado com sofrimento, fá-lo para
demonstrar a sua justiça. O sofrimento tem caráter de prova.
O Livro de Jó não é a última
palavra da Revelação sobre este tema. É um anúncio, de certo modo, da Paixão de
Cristo. Entretanto, só por si, já é argumento suficiente para que a
resposta à pergunta sobre o sentido do sofrimento não fique ligada, sem
reservas, à ordem moral baseada somente na justiça. Se tal resposta tem uma
fundamental e transcendente razão e validade, ao mesmo tempo apresenta-se não só
insuficiente em casos análogos ao do sofrimento do justo Jó, mas parece, mais
ainda, reduzir e empobrecer o conceito de justiça que encontramos na
Revelação.
12. O Livro de Jó põe de modo
perspicaz, a pergunta sobre o «porquê» do sofrimento; e mostra também que ele
atinge o inocente, mas ainda não dá a solução ao problema.
No Antigo Testamento notamos uma
orientação que tende a superar o conceito segundo o qual o sofrimento teria
sentido unicamente como castigo pelo pecado, ao mesmo tempo que se acentua o
valor educativo da pena-sofrimento. Deste modo, nos sofrimentos infligidos por
Deus ao povo eleito está contido um convite da sua misericórdia, que corrige
para levar à conversão.
«Estes castigos não sucederam para
a nossa ruína, mas são uma lição salutar para o nosso povo».26(2Mc 6,12)
Assim é afirmada a dimensão pessoal
da pena. Segundo esta dimensão, a pena tem sentido não só porque serve para
contrabalançar o mesmo mal objetivo da transgressão com outro mal, mas
sobretudo porque oferece a possibilidade de reconstruir o bem no próprio sujeito
que sofre.
Isto é um aspeto importantíssimo do
sofrimento. Está profundamente arraigado em toda a Revelação da Antiga e
sobretudo da Nova Aliança. O sofrimento deve servir à conversão, isto é,
à reconstrução do bem no sujeito, que pode reconhecer a misericórdia
divina neste chamamento à penitência. A penitência tem como finalidade superar o
mal que, sob diversas formas, se encontra latente no homem, e consolidar o bem,
tanto no mesmo homem, como nas relações com os outros e, sobretudo, com Deus.
13. Mas para se poder perceber a
verdadeira resposta ao «porquê» do sofrimento, devemos voltar a nossa atenção
para a revelação do amor divino, fonte última do sentido de tudo aquilo que
existe. O amor é também a fonte mais rica do sentido do sofrimento que, não
obstante, permanece sempre um mistério; estamos conscientes da insuficiência e
inadequação das nossas explicações. Cristo introduz-nos no mistério e ajuda-nos
a descobrir o «porquê» do sofrimento, na medida em que nós formos capazes de
compreender a sublimidade do amor divino.
Para descobrir o sentido profundo do
sofrimento, seguindo a Palavra de Deus revelada, é preciso abrir-se amplamente
ao sujeito humano com as suas múltiplas potencialidades. É preciso, sobretudo,
acolher a luz da Revelação, não só porque ela exprime a ordem transcendente da
justiça, mas também porque ilumina esta ordem com o amor, qual fonte definitiva
de tudo o que existe. O Amor é ainda a fonte mais plena para a resposta à
pergunta acerca do sentido do sofrimento. Esta resposta foi dada por Deus ao
homem na Cruz de Jesus Cristo.
IV - JESUS CRISTO:
O SOFRIMENTO VENCIDO PELO AMOR
14. «Deus amou tanto o mundo que
deu o Seu Filho unigênito, para que todo aquele que crê n'Ele não pereça, mas
tenha a vida eterna». 27(Jo 3,16) Estas palavras pronunciadas por Cristo no colóquio
com Nicodemos, introduzem-nos no próprio centro da ação salvífica de Deus.
Elas exprimem também a própria essência da soteriologia cristã, quer dizer,
da teologia da salvação.
E salvação significa libertação do mal; e por isso
mesmo está em relação íntima com o problema do sofrimento. Segundo as palavras
dirigidas a Nicodemos, Deus dá o seu Filho ao «mundo» para libertar o homem do
mal, que traz em si a definitiva e absoluta perspectiva do sofrimento. Ao mesmo
tempo, a palavra «dá» («deu») indica que esta libertação deve ser
realizada pelo Filho unigênito, mediante o seu próprio sofrimento. E nisto se
manifesta o amor, o amor infinito, quer do mesmo Filho unigênito, quer do Pai, o
qual «dá» para isso o seu Filho. Tal é o amor para com o homem, o amor pelo «mundo»: é o amor salvífico.
Encontramo-nos aqui — importa
dar-nos conta disso claramente na nossa reflexão comum sobre este problema —
perante uma dimensão completamente nova do nosso tema. É uma dimensão diversa
daquela que determinava e, em certo sentido, restringia a busca do significado
do sofrimento dentro dos limites da justiça. É a dimensão da Redenção,
que no Antigo Testamento as palavras do justo Jó — pelo menos segundo o texto
da Vulgata — parecem já prenunciar: «Sei, de fato, que o meu Redentor vive e
que no último dia ... verei o meu Deus ...».28(Jó 19,25-26)
Enquanto que até aqui as nossas
considerações se concentravam, primeiro que tudo e, em certo sentido,
exclusivamente, no sofrimento sob as suas múltiplas formas temporais (como era o
caso também dos sofrimentos do justo Jó), agora as palavras do colóquio de
Jesus com Nicodemos, acima citadas, referem-se ao sofrimento no seu sentido
fundamental e definitivo. Deus dá o seu Filho unigênito, para que o homem «não pereça»; e o significado deste
«não pereça» é cuidadosamente determinado
pelas palavras que lhe seguem: «mas tenha a vida eterna».
O homem «perece», quando perde a «vida eterna». O contrário da salvação não é, pois, somente o sofrimento
temporal, qualquer sofrimento, mas o sofrimento definitivo: a perda da vida
eterna, o ser repelido por Deus, a condenação. O Filho unigênito foi dado à
humanidade para proteger o homem, antes de mais nada, deste mal definitivo e do
sofrimento definitivo. Na sua missão salvífica, portanto, o Filho deve
atingir o mal nas suas próprias raízes transcendentais, a partir das quais se
desenvolve na história do homem. Estas raízes transcendentais do mal estão
pegadas ao pecado e à morte: elas estão, de fato, na base da perda da vida
eterna. A missão do Filho unigênito consiste em vencer o pecado e a morte.
E Ele vence o pecado com a sua obediência até à morte, e vence a morte com a
sua ressurreição.
15. Quando se diz que Cristo com a
sua missão atinge o mal nas próprias raízes, nós pensamos não só no mal e no
sofrimento definitivo, escatológico (para que o homem «não pereça, mas tenha a
vida eterna»), mas também — pelo menos indiretamente — no mal e no
sofrimento na sua dimensão temporal e histórica. O mal, de fato,
permanece ligado ao pecado e à morte. E ainda que se deva ter muita cautela em
considerar o sofrimento do homem como conseqüência de pecados concretos (como
mostra precisamente o exemplo do justo Jó), ele não pode contudo ser separado
do pecado das origens, daquilo que em São João é chamado «o pecado do mundo»,
29(Jo 1,29) nem do pano de fundo pecaminoso das ações pessoais e dos processos
sociais na história do homem. Se não é permitido aplicar aqui o critério
restrito da dependência direta (como faziam os três amigos de Jó), não se pode
também, por outro lado, pôr absolutamente de parte o critério segundo o qual, na
base dos sofrimentos humanos, há uma multíplice implicação com o pecado.
Sucede o mesmo quando se trata da
morte. Esta, muitas vezes, até é esperada, como uma libertação dos
sofrimentos desta vida; ao mesmo tempo, não é possível deixar passar
despercebido que ela constitui como que uma síntese definitiva da obra
destruidora do sofrimento, tanto no organismo corporal como na vida psíquica. Mas
a morte comporta, antes de mais, a desagregação da personalidade total
psicofísica do homem. A alma sobrevive e subsiste separada do corpo, ao passo
que o corpo é sujeito a uma decomposição progressiva, segundo as palavras do
Senhor Deus, pronunciadas depois do pecado cometido pelo homem nos princípios da
sua história terrena: «És pó e em pó te hás-de tornar».30(Gn 3,19) Portanto, mesmo
que a morte não seja um sofrimento no sentido temporal da palavra, mesmo que de
certo modo ela se encontre para além de todos os sofrimentos,
contudo o mal que o ser humano nela experimenta tem um caráter definitivo e
totalizante.
Com a sua obra salvífica, o Filho unigênito liberta o homem do
pecado e da morte. Antes de mais, cancela da história do homem o domínio do
pecado, que se enraizou sob o influxo do Espírito maligno a partir do pecado
original; e dá desde então ao homem a possibilidade de viver na Graça
santificante. Na esteira da vitória sobre o pecado, tira o domínio também
à morte, abrindo, com a sua ressurreição, o caminho para a futura
ressurreição dos corpos. Uma e outra são condição essencial da «vida eterna»,
isto é, da felicidade definitiva do homem em união com Deus; isto, para os
salvados, quer dizer que na perspectiva escatológica o sofrimento é totalmente
cancelado.
Como conseqüência da obra salvífica
de Cristo, o homem passou a ter, durante a sua existência na terra, a
esperança da vida e da santidade eternas. E ainda que a vitória sobre o
pecado e sobre a morte, alcançada por Cristo com a sua Cruz e a sua
Ressurreição, não suprima os sofrimentos temporais da vida humana, nem isente do
sofrimento toda a dimensão histórica da existência humana, ela projeta,
no entanto, sobre essa dimensão e sobre todos os sofrimentos uma luz nova.
É a luz do Evangelho, ou seja, da Boa Nova.
No centro desta luz encontra-se a
verdade enunciada no colóquio com Nicodemos: «Com efeito, Deus amou tanto o
mundo que deu o seu Filho unigênito».31(Jo 3,16) Esta verdade opera uma mudança, desde
os fundamentos, no quadro da história do homem e da sua situação terrena. Apesar
do pecado que se enraizou nesta história, como herança original, como «pecado
do mundo» e como suma dos pecados pessoais, Deus Pai amou o Filho unigênito,
isto é, ama-o de modo perdurável; depois, no tempo, precisamente por motivo
deste amor que supera tudo, Ele «dá» este Filho, a fim de que atinja as
próprias raízes do mal humano e assim se aproxime, de maneira salvífica, do
inteiro mundo do sofrimento, no qual o homem é participante.
16. Na sua atividade messiânica no
meio de Israel, Cristo tornou-se incessantemente próximo do mundo do
sofrimento humano. «Passou fazendo o bem»; 32(At 10,38) e adotava este seu modo
de proceder em primeiro lugar para com os que sofriam e os que esperavam ajuda.
Curava os doentes, consolava os aflitos, dava de comer aos famintos, libertava
os homens da surdez, da cegueira, da lepra, do demônio e de diversas
deficiências físicas; por três vezes, restituiu mesmo a vida aos mortos. Era
sensível a toda a espécie de sofrimento humano, tanto do corpo como da alma. Ao
mesmo tempo ensinava; e no centro do seu ensino propôs as oito
bem-aventuranças, que são dirigidas aos homens provados por diversos
sofrimentos na vida temporal. Estes são os «pobres em espírito», «os aflitos», «os que têm fome e sede de justiça»,
«os perseguidos por causa da justiça», quando os injuriam, os perseguem e, mentindo, dizem toda a espécie de mal
contra eles por causa de Cristo... 33(cf Mt 5,3-11) É assim segundo São Mateus; e São Lucas
menciona ainda explicitamente aqueles «que agora têm fome». 34(Cf Lc 6,12)
De qualquer modo, Cristo
aproximou-se do mundo do sofrimento humano, sobretudo pelo fato de ter ele
próprio assumido sobre si este sofrimento. Durante a sua atividade
pública, ele experimentou não só o cansaço, a falta de uma casa, a incompreensão
mesmo da parte dos que viviam mais perto dele, mas também e acima de tudo foi
cada vez mais acantoado por um círculo hermético de hostilidade, ao mesmo tempo
que se iam tornando cada dia mais manifestos os preparativos para o eliminar do
mundo dos vivos. E Cristo estava cônscio de tudo isto e muitas vezes falou aos
seus discípulos dos sofrimentos e da morte que o esperavam: «Eis que subimos a
Jerusalém; e o Filho do homem vai ser entregue nas mãos dos príncipes dos
sacerdotes e dos escribas, e eles condena-lo-ão à morte e entrega-lo-ão nas mãos
dos gentios, que o hão-de escarnecer, cuspir sobre ele, flagelar e matar. Mas
três dias depois ressuscitará». 35(Mc 10,33-34)
Cristo vai ao encontro da sua paixão e
morte com plena consciência da missão que deve realizar exatamente desse modo.
É por meio deste seu sofrimento que ele tem de fazer com que «o homem
não pereça, mas tenha a vida eterna». É precisamente por meio da sua Cruz que
ele deve atingir as raízes do mal, que se embrenham na história do homem e nas
almas humanas. É precisamente por meio da sua Cruz que ele deve realizar a
obra da salvação. Esta obra, no desígnio do Amor eterno, tem um caráter
redentor.
Por isso, Cristo repreende
severamente Pedro quando ele pretende fazê-lo abandonar os pensamentos sobre o
sofrimento e a morte na Cruz. 36(cf Mt 16,23) E quando, no momento de Ele ser preso no
Getsêmani, o mesmo Pedro procura defendê-lo com a espada, Cristo diz-lhe: «Mete
a tua espada na bainha ... Como se cumpririam então as Escrituras,
segundo as quais é necessário que assim suceda?». 37(Mt 26,52-54) E diz ainda:
«Não hei-de eu beber o cálice que meu Pai me deu?». 38(Jo 18,11) Esta resposta — tal
como outras que aparecem em diversos pontos do Evangelho — mostram quanto Cristo
estava profundamente compenetrado do pensamento que já tinha exprimido no
colóquio com Nicodemos: «Com efeito, Deus amou tanto o mundo que deu o seu
Filho unigênito, para que todo aquele que crê n'Ele não pereça, mas tenha a vida
eterna». 39(Jo 3,16) Cristo encaminha-se para o próprio sofrimento, consciente da
força salvífica deste; e vai, obediente ao Pai e, acima de tudo, unido ao Pai
naquele mesmo amor, com o qual Ele amou o mundo e o homem no mundo. E por
isso, São Paulo escreverá, referindo-se a Cristo: «Amou-me e entregou-se a si
mesmo por mim». 40(Gl 2,20)
17. As Escrituras tinham que ser
cumpridas. Eram muitos os textos messiânicos do Antigo Testamento que anunciavam
os sofrimentos do futuro Ungido de Deus. De entre todos eles, é particularmente
comovedor aquele que habitualmente se designa como Canto quarto do Servo de
Javé, contido no Livro de Isaías. O profeta, que justamente é chamado «o
quinto evangelista», dá-nos neste Canto a imagem dos sofrimentos do Servo, com
um realismo tão vivo como se o contemplasse com os próprios olhos: com os olhos
do corpo e com os do espírito. A paixão de Cristo torna-se, à luz dos versículos
de Isaías, quase mais expressiva e comovente do que nas descrições dos próprios
evangelistas. Eis como se nos apresenta o verdadeiro Homem das dores:
«Não tem aparência bela nem
decorosa
para atrair os nossos olhares...
Foi desprezado e evitado pelos homens,
homem das dores, familiarizado com o sofrimento;
como pessoa da qual se desvia o rosto,
desprezível e sem valor para nós.
No entanto, ele tomou sobre si as nossas enfermidades
carregou-se com as nossas dores,
e nós o julgávamos açoitado
e homem ferido por Deus e humilhado.
Mas foi transpassado por causa dos nossos delitos,
e espezinhado por causa das nossas culpas.
A punição salutar para nós foi-lhe infligida a ele,
e as suas chagas nos curaram.
Todos nós, como ovelhas, nos desgarramos,
cada um seguia o seu caminho;
o Senhor fez cair sobre ele
as culpas de todos nós». 41(Is 53, 2-6)
O Canto do Servo sofredor contém uma
descrição na qual se podem, de certo modo, identificar os momentos da paixão de
Cristo com vários pormenores dos mesmos: a prisão, a humilhação, as bofetadas,
os escarros, o rebaixamento da própria dignidade do prisioneiro, o juízo
injusto; e, a seguir, a flagelação, a coroação de espinhos e o escárnio, a
caminhada com a cruz, a crucifixão e a agonia.
Mais do que esta descrição da
paixão, impressiona-nos ainda nas palavras do Profeta a profundidade do
sacrifício de Cristo. Ele, embora inocente, carregou-se com os sofrimentos
de todos os homens, porque assumiu sobre si os pecados de todos. «O Senhor fez
cair sobre ele as culpas de todos nós»: todo o pecado do homem, na sua
extensão e profundidade, se torna a verdadeira causa do sofrimento do Redentor.
Se o sofrimento «se pode medir» pelo mal suportado, então as expressões do
Profeta permitem-nos compreender a medida deste mal e deste sofrimento
que Cristo carregou sobre si. Pode-se dizer que se trata de um sofrimento «substitutivo»; mas ele é, sobretudo,
«redentor».
O Homem das dores da citada
profecia é verdadeiramente aquele «cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo». 42(Jo
1,29) Com o seu sofrimento, os pecados são cancelados precisamente porque só
ele, como Filho unigênito, podia tomá-los sobre si, assumi-los com aquele
amor para com o Pai que supera o mal de todos os pecados; num certo sentido,
ele aniquila este mal, no plano espiritual das relações entre Deus e a
humanidade, e enche o espaço criado com o bem.
Deparamos aqui com a dualidade de
natureza de um único sujeito pessoal do sofrimento redentor. Aquele que, com a
sua paixão e morte na Cruz, opera a Redenção é o Filho unigênito que Deus nos «deu». Ao mesmo tempo, este Filho da mesma natureza que o Pai sofre como
homem. O seu sofrimento tem dimensões humanas; e tem igualmente — únicas na
história da humanidade — uma profundidade e intensidade que, embora sendo
humanas, podem ser também uma profundidade e intensidade de sofrimento
incomparáveis, pelo fato de o Homem que sofre ser o próprio Filho unigênito em
pessoa: «Deus de Deus». Portanto, somente Ele — o Filho unigênito — é capaz de
abarcar a extensão do mal contida no pecado do homem: em cada um dos pecados e
no pecado «total», segundo as dimensões da existência histórica da humanidade
na terra.
18. Pode-se dizer que as
considerações anteriores nos levam agora diretamente ao Getsêmani e ao Gólgota,
onde se cumpriu o mesmo Canto do Servo sofredor, contido no Livro de Isaías.
Antes de chegar aí, porém, leiamos os versículos sucessivos do Canto que
constituem uma antecipação profética da paixão do Getsêmani e do Gólgota. O
Servo sofredor — e isso é por sua vez algo essencial para uma análise da paixão
de Cristo — toma sobre si aqueles sofrimentos de que se falou, de um modo
totalmente voluntário.
«Era maltratado e ele sofria,
não abria a boca;
era como cordeiro levado ao matadouro,
como ovelha muda nas mãos do tosquiador.
E não abriu a boca.
Com tirânica sentença foi suprimido;
e quem se preocupa pela sua sorte,
pelo modo como foi suprimido da terra dos vivos,
e foi ferido de morte por causa da iniqüidade do [seu povo?
Deram-lhe com os réus sepultura,
e uma tumba entre os malfeitores,
embora não tivesse cometido injustiça alguma,
nem se tenha achado engano algum na sua boca». 43(Is 53,7-9)
Cristo sofre voluntariamente e
sofre inocentemente. Ele acolhe, com o seu sofrimento, aquela interrogação —
feita muitas vezes pelos homens — que foi expressa, num certo sentido, de uma
maneira radical no Livro de Jó. Cristo, porém, não só é portador em si da mesma
interrogação (e isso de um modo ainda mais radical, uma vez que Ele não é
somente homem como Jó, mas é o Filho unigênito de Deus), como dá também a
resposta mais completa que é possível a esta interrogação.
A resposta
emerge, pode-se dizer, da mesma matéria que constitui a pergunta. Cristo
responde a esta pergunta, sobre o sofrimento, e sobre o sentido do sofrimento,
não apenas com o seu ensino, isto é, com a Boa Nova, mas primeiro que tudo, com
o próprio sofrimento, que está integrado, de um modo orgânico e indissolúvel,
com os ensinamentos da Boa Nova. E esta é, por assim dizer, a última palavra, a
síntese desse ensino: «a palavra da Cruz», como dirá um dia São Paulo.
44(cf 1Cor 1,18).
Esta «linguagem da Cruz» preenche
a imagem da antiga profecia com uma realidade definitiva. Muitas passagens e
discursos da pregação pública de Cristo atestam como Ele aceita desde o
princípio este sofrimento, que é a vontade do Pai para a salvação do mundo.
Neste ponto a oração no Getsêmani reveste-se de uma importância decisiva.
As palavras: «Meu Pai, se é possível passe de mim este cálice! Contudo, não se
faça como eu quero, mas como tu queres!» 45(Mt 26,39) e as que vêm a seguir:
«Meu Pai,
se este cálice não pode passar sem que eu o beba, faça-se a tua vontade», 46(Mt
26,42)
encerram em si uma eloqüência multiforme. Provam a verdade daquele amor que, com
a sua obediência, o Filho unigênito demonstra para com o Pai. Atestam, ao mesmo
tempo, a verdade do seu sofrimento.
As palavras da oração de Cristo no Getsêmani
provam a verdade do amor mediante a verdade do sofrimento. As palavras de
Cristo confirmam, com toda a simplicidade e cabalmente, esta verdade humana do
sofrimento: o sofrimento consiste em suportar o mal, diante do qual o homem
estremece; e precisamente como disse Cristo no Getsêmani , também o homem diz: «passe de mim».
As palavras de Cristo confirmam,
ainda, esta única e incomparável profundidade e intensidade do sofrimento, que
somente o Homem que é o Filho unigênito pôde experimentar; elas atestam
aquela profundidade e intensidade que as palavras proféticas acima referidas
nos ajudam, à sua maneira, a compreender. Não, por certo, completamente (para
isso seria necessário penetrar o mistério divino-humano d'Aquele que dele era
sujeito); elas ajudam-nos, no entanto, a compreender pelo menos a diferença (e,
ao mesmo tempo, a semelhança) que se verifica entre todo o possível sofrimento
do homem e o do Deus-Homem. O Getsêmani é o lugar onde precisamente este
sofrimento, com toda a verdade expressa pelo Profeta quanto ao mal que ele faz
experimentar, se revelou quase definitivamente diante dos olhos da alma de
Cristo.
Depois das palavras do Getsêmani,
vêm as palavras pronunciadas no Gólgota, que atestam esta profundidade — única
na história do mundo — do mal do sofrimento que se experimenta. Quando Cristo
diz: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?», as suas palavras não são
apenas expressão daquele abandono que, por diversas vezes, se encontra expresso
no Antigo Testamento, especialmente nos Salmos; e, em particular, no Salmo 22
(21), do qual provêm as palavras referidas. 47(Sl
21,2) Pode-se dizer que estas
palavras sobre o abandono nascem no plano da união inseparável do Filho com o
Pai, e nascem porque o Pai «fez cair sobre ele as culpas de todos nós», 48(Is
53,6)
na linha daquilo mesmo que mais tarde dirá São Paulo: «A ele, que não conhecera
o pecado, Deus tratou-o, por nós, como pecado». 49(2Cor 5,21) Juntamente com este
horrível peso, que dá bem a medida de «todo» o mal que está em voltar as
costas a Deus, contido no pecado, Cristo, mediante a profundidade divina da
união filial com o Pai, apercebe-se bem, de modo humanamente inexprimível,
deste sofrimento que é a separação, a rejeição do Pai, a ruptura com
Deus. Mas é exatamente mediante este sofrimento que ele realiza a Redenção e
pode dizer ao expirar: «Tudo está consumado». 50(Jo 19,30)
Pode-se dizer também que se cumpriu
a Escritura, que se realizaram definitivamente as palavras do Canto do Servo
sofredor: «Aprouve ao Senhor esmagá-lo pelo sofrimento». 51(Is 53,10) O Sofrimento
humano atingiu o seu vértice na paixão de Cristo; e, ao mesmo tempo, revestiu-se
de uma dimensão completamente nova e entrou numa ordem nova: ele foi
associado ao amor, àquele amor de que Cristo falava a Nicodemos, àquele amor
que cria o bem, tirando-o mesmo do mal, tirando-o por meio do sofrimento, tal
como o bem supremo da Redenção do mundo foi tirado da Cruz de Cristo e nela
encontra perenemente o seu princípio. A Cruz de Cristo tornou-se uma fonte da
qual brotam rios de água viva. 52(cf Jo 7,37-38) Nela devemos também repropor-nos a pergunta
sobre o sentido do sofrimento, e ler aí até ao fim a resposta a tal pergunta.
V - PARTICIPANTES NOS SOFRIMENTOS DE
CRISTO
19. 0 mesmo Canto do Servo sofredor
no Livro de Isaías conduz-nos, através dos versículos seguintes, exatamente na
direção dessa pergunta e dessa resposta: «Aprouve ao Senhor que...
oferecendo a sua vida em expiação,
gozasse de uma descendência longeva
e por seu meio tivesse efeito o intento do Senhor.
Das aflições do seu coração sairá para ver a luz
e desta visão se há-de saciar.
O Justo, meu servo, justificará a muitos
e tomará sobre si as nossas culpas.
Por isso, dar-lhe-ei-em prêmio as multidões
e fará dos poderosos os seus despojos,
em recompensa de se ter prodigalizado,
mesmo até à morte,
e se ter deixado contar entre os malfeitores,
quando, ao invés, ele tomou sobre si a culpa de muitos
e intercede pelos malfeitores». 53(Is 53,10-12).
Pode-se dizer que com a paixão de
Cristo todo o sofrimento humano veio a encontrar-se numa nova situação. Parece
mesmo que Jó a tinha pressentido, quando dizia: «Eu sei que o meu Redentor
está vivo...», 54(Jo 19,25) e que para ela tivesse orientado o seu próprio sofrimento
que, sem a Redenção, não teria podido revelar-lhe a plenitude do seu
significado. Na Cruz de Cristo, não só se realizou a Redenção através do
sofrimento, mas também o próprio sofrimento humano foi redimido. Cristo —
sem ter culpa nenhuma própria — tomou sobre si «todo o mal do pecado».
A
experiência deste mal determinou a proporção incomparável do sofrimento de
Cristo, que se tornou o preço da Redenção. É disto que fala o Canto do
Servo sofredor de Isaías. Disto falarão também, a seu tempo, as testemunhas da
Nova Aliança, estabelecida com o Sangue de Cristo. Eis as palavras do Apóstolo
Pedro, na sua primeira Carta: «Vós sabeis que não fostes resgatados dos vossos
costumes fúteis, herdados dos vossos antepassados, a preço de coisas
corruptíveis, como a prata e o ouro, mas pelo sangue precioso de Cristo,
como de um cordeiro sem defeito e sem mácula». 55(1Pd 1,18-19) E o Apóstolo Paulo, na
Carta aos Gálatas, dirá: «Entregou-se a si mesmo pelos nossos pecados, a fim de
nos subtrair ao mundo maligno em que vivemos»; 56(Gl 1,4) e na primeira Carta aos
Coríntios: «Fostes comprados por elevado preço. Glorificai, pois, a Deus no
vosso corpo». 57(1Cor 6,20)
É assim, com estas e com expressões
semelhantes, que as testemunhas da Nova Aliança falam da grandeza da Redenção,
que se realizou mediante o sofrimento de Cristo. O Redentor sofreu em lugar do
homem e em favor do homem.
Todo o homem tem uma sua
participação na Redenção. E cada um dos homens é também chamado a
participar naquele sofrimento, por meio do qual se realizou a Redenção; é
chamado a participar naquele sofrimento, por meio do qual foi redimido também
todo o sofrimento humano. Realizando a Redenção mediante o sofrimento, Cristo
elevou ao mesmo tempo o sofrimento humano ao nível de Redenção. Por
isso, todos os homens, com o seu sofrimento, se podem tornar também
participantes do sofrimento redentor de Cristo.
20. Os textos do Novo Testamento
exprimem esta mesma idéia em diversos pontos. Na segunda Carta aos Coríntios, o
Apóstolo escreve: «Em tudo atribulados, mas não oprimidos, perplexos, mas não
desesperados, perseguidos, mas não abandonados, abatidos, mas não perdidos, por
toda a parte levamos sempre no corpo os sofrimentos de Jesus, para que
também a vida de Jesus se manifeste no nosso corpo. De fato, enquanto vivemos,
somos continuamente entregues à morte por causa de Jesus, para que a vida de
Jesus se manifeste também na nossa carne mortal ... com a certeza de que aquele
que ressuscitou o Senhor Jesus, nos ressuscitará também a nós com Jesus». 58(2Cor
4,8-11.14).
São Paulo fala dos diversos
sofrimentos e, em particular, daqueles em que os primeiros cristãos se tornavam
participantes «por causa de Jesus». Estes sofrimentos permitem aos
destinatários desta Carta participar na obra da Redenção, realizada mediante os
sofrimentos e a morte do Redentor.
A eloqüência da Cruz e da morte, no
entanto, é completada com a eloqüência da Ressurreição. O homem encontra
na Ressurreição uma luz completamente nova, que o ajuda a abrir caminho através
das trevas cerradas das humilhações, das dúvidas, do desespero e da perseguição.
Por isso, o Apóstolo escreverá ainda na segunda Carta aos Coríntios: «Pois,
assim como são abundantes para nós os sofrimentos de Cristo, assim por
obra de Cristo é também superabundante a nossa consolação». 59(2Cor 1,5) Noutras
passagens dirige aos destinatários dos escritos palavras de encorajamento: «Que
o Senhor dirija os vossos corações para o amor de Deus e a paciência de Cristo». 60(2Ts
3,5) E na Carta aos Romanos escreve:
«Exorto-vos, pois, irmãos, pela
misericórdia de Deus, a oferecer os vossos corpos como sacrifício vivo,
santo e agradável a Deus; é este o culto espiritual que lhe deveis prestar».
61(Rm 12,1)
A própria participação nos
sofrimentos de Cristo, nestas expressões apostólicas, reveste-se de uma dupla
dimensão. Se um homem, se torna participante dos sofrimentos de Cristo, isso
acontece porque Cristo abriu o seu sofrimento ao homem, porque Ele
próprio, no seu sofrimento redentor, se tornou, num certo sentido, participante
de todos os sofrimentos humanos. Ao descobrir, pela fé, o sofrimento redentor de
Cristo, o homem descobre nele, ao mesmo tempo, os próprios sofrimentos,
reencontra-os, mediante a fé, enriquecidos de um novo conteúdo e com um novo
significado.
Esta descoberta ditou a São Paulo
palavras particularmente vigorosas na Carta aos Gálatas: «Com Cristo estou
cravado na Cruz; e já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim. E, enquanto
eu vivo a vida mortal, vivo na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou a
si mesmo por mim». 62(Gl 2,19-20) A fé permite ao autor destas palavras conhecer aquele
amor que levou Cristo à Cruz. E se ele amou assim, sofrendo e morrendo, então,
com este seu sofrimento e morte, ele vive naquele a quem amou assim, vive
no homem: em Paulo. E vivendo nele — à medida que o Apóstolo, consciente disso
mediante a fé, responde com amor ao seu amor — Cristo torna-se também de um modo
particular unido ao homem, a Paulo, através da Cruz.
Esta união
inspirou ao mesmo Apóstolo, ainda na Carta aos Gálatas, estas outras palavras,
não menos fortes: «Quanto a mim, jamais suceda que eu me glorie a não
ser na Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está
crucificado para mim, como eu para o mundo». 63(Gl 6,14)
21. A Cruz de Cristo projeta a luz
salvífica de um modo assim tão penetrante sobre a vida do homem e, em
particular, sobre o seu sofrimento, porque, mediante a fé, chega até ele
juntamente com a Ressurreição: o mistério da paixão está contido no
mistério pascal. As testemunhas da paixão de Cristo são, ao mesmo tempo,
testemunhas da sua Ressurreição.
São Paulo escreve: «Poderei conhecê-lo, a ele
e à força da sua Ressurreição, e ser integrado na participação dos seus
sofrimentos, transformado numa imagem da sua morte, com a esperança de chegar à
ressurreição dos mortos». 64(Fl 3,10-11) O Apóstolo experimentou isto verdadeiramente: em
primeiro lugar, «a força da Ressurreição» de Cristo, no caminho de Damasco; e
só depois, nesta luz pascal, chegou àquela «participação nos seus sofrimentos»
de que fala, por exemplo, na Carta aos Gálatas. A caminhada de São Paulo é
claramente pascal: a participação na Cruz de Cristo realiza-se através
da experiência do Ressuscitado e, por isso, graças a uma participação
especial na Ressurreição. E por esta razão que mesmo nas expressões do Apóstolo
sobre o tema do sofrimento aparece tão freqüentemente o motivo da glória, à qual
a Cruz de Cristo dá início.
As testemunhas da Cruz e da
Ressurreição estavam convencidas de que «através de muitas tribulações é que
temos de entrar no reino de Deus». 65(at 14,22) E São Paulo, escrevendo aos
Tessalonicenses, exprime-se deste modo: «Nós mesmos nos ufanamos de vós... pela
vossa constância e pela vossa fidelidade, no meio de todas as vossas aflições e
perseguições que suportais. É isto um indício do justo juízo de Deus, para que
sejais feitos dignos do reino de Deus, pelo qual, precisamente, sofreis». 66(2Ts
1,4-5) Portanto, a participação nos sofrimentos de Cristo é, ao mesmo tempo,
sofrimento pelo reino de Deus. Aos olhos de Deus justo, frente ao seu juízo,
todos os que participam nos sofrimentos de Cristo tornam-se dignos deste reino.
Mediante os seus sofrimentos, eles restituem, em certo sentido, o preço infinito
da paixão e morte de Cristo, que se tornou o preço da nossa Redenção: por este
preço, o reino de Deus foi de novo consolidado na história do homem, tornando-se
a perspectiva definitiva da sua existência terrena. Cristo introduziu-nos neste
reino pelo seu sofrimento. E é também mediante o sofrimento que amadurecem
para ele os homens envolvidos pelo mistério da Redenção de Cristo.
22. À perspectiva do reino de Deus
está unida também a esperança daquela glória, cujo início se encontra na Cruz de
Cristo. A Ressurreição revelou esta glória — a glória escatológica — que na Cruz
de Cristo era completamente ofuscada pela imensidão do sofrimento. Aqueles que
participam nos sofrimentos de Cristo, estão também chamados, mediante os seus
próprios sofrimentos, para tomar parte na glória. São Paulo exprime esta
idéia em diversas passagens.
Aos Romanos, escreve: «Somos ... co-herdeiros de
Cristo, se, porém, sofrermos com ele, para sermos também glorificados com ele.
Tenho como coisa certa, efetivamente, que os sofrimentos do tempo presente não
têm proporção alguma com a glória que há-de revelar-se em nós». 67(Rm 8,17-18) Na segunda
Carta aos Coríntios lemos: «Realmente, o leve peso da nossa tribulação do
momento presente prepara-nos, para além de toda e qualquer medida, um peso
eterno de glória: não que nós olhemos para as coisas visíveis, mas para as
invisíveis». 68(2Cor 4,17-18) O Apóstolo Pedro exprimirá esta verdade nas seguintes
palavras da sua primeira Carta: «Alegrai-vos, antes, na medida em que
participais nos sofrimentos de Cristo, para que também vos alegreis e rejubileis
na sua gloriosa aparição». 69(1Pd 4,13)
O motivo do sofrimento e da
glória tem uma característica profundamente evangélica, que se clarifica
mediante a referência à Cruz e à Ressurreição. A Ressurreição tornou-se, antes
de mais nada, a manifestação da glória, que corresponde à elevação de Cristo por
meio da sua Cruz. Com efeito, se a Cruz representou aos olhos dos homens o
despojamento de Cristo, ela foi, ao mesmo tempo, aos olhos de Deus a sua
elevação. Na Cruz, Cristo alcançou e realizou em toda a plenitude a sua
missão: cumprindo a vontade do Pai, realizou-se ao mesmo tempo a si mesmo. Na
fraqueza manifestou o seu poder; e na humilhação, toda a sua grandeza
messiânica Não são porventura uma prova desta grandeza todas as palavras
pronunciadas durante a agonia, no Gólgota, e, de modo especial, as palavras que
se referem aos autores da crucifixão: «Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que
fazem»? 70(Lc 23,34) Estas palavras impõem-se àqueles que são participantes dos
sofrimentos de Cristo, com a força de um exemplo supremo.
O sofrimento constitui
também um chamamento a manifestar a grandeza moral do homem, a sua maturidade
espiritual. Disto deram prova, ao longo das diversas gerações, os mártires e
os confessores de Cristo, fiéis às palavras: «Não temais os que matam o corpo e
que não podem matar a alma». 71(Mt 10,28).
A Ressurreição de Cristo revelou «a
glória que está contida no próprio sofrimento de Cristo, a qual muitas
vezes se refletiu e se reflete no sofrimento do homem, como expressão da sua
grandeza espiritual. Importa reconhecer esta glória, não só nos mártires da fé,
mas também em muitos outros homens que, por vezes, mesmo sem a fé em Cristo,
sofrem e dão a vida pela verdade e por uma causa justa. Nos sofrimentos de todos
estes é confirmada, de um modo particular, a grande dignidade do homem.
23. O sofrimento, de fato, é sempre
uma provação — por vezes, uma provação muito dura — à qual a humanidade é
submetida. Impressiona-nos nas páginas das Cartas de São Paulo, com freqüência,
aquele paradoxo evangélico da fraqueza e da força, experimentado
de maneira particular pelo Apóstolo, e que experimentam com ele também todos
aqueles que participam nos sofrimentos de Cristo. Na segunda Carta aos Coríntios,
escreve: «De boa vontade me ufanarei de preferência das minhas fraquezas, para
que habite em mim a força de Cristo». 72(2Cor 12,9) Na segunda Carta a Timóteo lemos:
«É também por esta causa que eu sofro estes males, mas não me envergonho: porque
sei em quem depositei a minha confiança». 73(2Tm 1,12) E na Carta aos Filipenses
dirá mesmo expressamente: «Tudo posso naquele que me dá força». 74(Fl
4,13).
Aqueles que participam nos
sofrimentos de Cristo têm diante dos olhos o mistério pascal da Cruz e da
Ressurreição, no qual Cristo, numa primeira fase, desce até às últimas da
debilidade e da impotência humana: efetivamente, morre pregado na Cruz. Mas
dado que nesta fraqueza se realiza ao mesmo tempo a sua elevação,
confirmada pela força da Ressurreição, isso significa que as fraquezas de todos
os sofrimentos humanos podem ser penetradas pela mesma potência de Deus,
manifestada na Cruz de Cristo. Nesta concepção, sofrer significa
tornar-se particularmente receptivo, particularmente aberto à ação
das forças salvíficas de Deus, oferecidas em Cristo à humanidade. Nele, Deus
confirmou que quer operar de um modo especial por meio do sofrimento, que é a
fraqueza e o despojamento do homem; e ainda, que é precisamente nesta fraqueza e
neste despojamento que Ele quer manifestar o seu poder. Compreende-se, deste
modo, a recomendação da primeira Carta de São Pedro: Se alguém «sofre por ser
cristão, não se envergonhe, mas dê glória a Deus por este título». 75(1Pd 4,16).
Na Carta aos Romanos, o Apóstolo
Paulo pronunciar-se-á ainda mais detidamente sobre este tema do «nascer da
força na fraqueza» e do retemperar-se espiritual do homem no meio das
provações e tribulações, que é vocação especial daqueles que participam nos
sofrimentos de Cristo: «Gloriamo-nos também nas tribulações, sabendo que da
tribulação deriva a paciência; da paciência a virtude comprovada; e da virtude
comprovada a esperança. A esperança não engana, porque o amor de Deus se
encontra largamente difundido nos nossos corações pelo Espírito Santo, que nos
foi dado». 76(Rm 5,3-5)
No sofrimento está como que contido um particular apelo à
virtude que o homem por seu turno deve exercitar. É a virtude da
perseverança em suportar tudo aquilo que incomoda e faz doer. Ao proceder assim,
o homem dá livre curso à esperança, que mantém em si a convicção de que o
sofrimento não prevalecerá sobre ele, nem o privará da dignidade própria do
homem, que anda unida à consciência do sentido da vida. E este sentido
manifesta-se simultaneamente com a obra do amor de Deus, que é o dom
supremo do Espírito Santo. A medida que participa deste amor , o homem sabe
orientar-se quando mergulhado no sofrimento: reencontrando-se, reencontra «a
alma» que julgava ter «perdido» 77(cf. Mc 8,35; Lc 9,24; Jo 12,25) por causa do sofrimento.
24. As experiências do Apóstolo
participante nos sofrimentos de Cristo, no entanto, vão ainda mais longe. Na
Carta aos Colossenses podemos ler as palavras que representam como que a última
etapa do itinerário espiritual em relação ao sofrimento. São Paulo escreve: «Alegro-me nos sofrimentos suportados por vossa causa e completo na minha
carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a
Igreja». 78(Cl 1,24) E numa outra Carta, o mesmo Apóstolo interpela os destinatários:
«Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo?». 79(1Cor 6,15)
No mistério pascal, Cristo deu
início à união com o homem na comunidade da Igreja. O mistério da Igreja
exprime-se nisto: a partir do ato em que alguém recebe o Batismo, que
configura a Cristo, e depois mediante o seu Sacrifício — sacramentalmente
mediante a Eucaristia — a Igreja edifica-se espiritualmente, sem cessar, como
Corpo de Cristo. Neste Corpo, Cristo quer estar unido a todos os homens, e está
unido de modo especial àqueles que sofrem. As palavras da Carta aos Colossenses,
acima citadas, atestam o caráter excepcional desta união. De fato, aquele
que sofre em união com Cristo — assim como o Apóstolo Paulo suportava as
suas «tribulações» em união com Cristo — não só haure de Cristo aquela força
de que em precedência se falou, mas «completa» também com o seu sofrimento «aquilo que falta aos sofrimentos de Cristo».
Neste contexto evangélico, é posta
em relevo, de um modo especial, a verdade sobre o caráter criativo do
sofrimento. O sofrimento de Cristo criou o bem da Redenção do mundo. Este
bem é em si mesmo inexaurível e infinito. Ninguém lhe pode acrescentar coisa
alguma. Ao mesmo tempo, porém, Cristo no mistério da Igreja, que é o seu Corpo,
em certo sentido abriu o próprio sofrimento redentor a todo o sofrimento humano.
Na medida em que o homem se torna participante nos sofrimentos de Cristo — em
qualquer parte do mundo e em qualquer momento da história — tanto mais ele
completa, a seu modo, aquele sofrimento, mediante o qual Cristo operou a
Redenção do mundo.
Quererá isto dizer, porventura, que
a Redenção operada por Cristo não é completa? Não. Isto significa apenas que a
Redenção, operada por virtude do amor satisfatório, permanece constantemente
aberta a todo o amor que se exprime no sofrimento humano. Nesta
dimensão — na dimensão do amor — a Redenção, já realizada totalmente, realiza-se
em certo sentido constantemente. Cristo operou a Redenção completa e cabalmente;
ao mesmo tempo, porém, não a fechou: no sofrimento redentor, mediante o qual se
operou a Redenção do mundo, Cristo abriu-se desde o princípio, e continua a
abrir-se constantemente, a todo o sofrimento humano. Sim, é algo que parece
fazer parte da própria essência do sofrimento redentor de Cristo: o fato
de ele solicitar a ser incessantemente completado.
Deste modo, com tal abertura a todos
os sofrimentos humanos, Cristo operou com o seu próprio sofrimento a Redenção do
mundo. Esta Redenção, no entanto, embora tenha sido realizada em toda a sua
plenitude pelo sofrimento de Cristo, à sua maneira vive e desenvolve-se ao mesmo
tempo na história dos homens. Vive e desenvolve-se como o Corpo de Cristo, que é
a Igreja; e nesta dimensão, todo o sofrimento humano, em razão da sua união com
Cristo no amor, completa o sofrimento de Cristo.
Completa-o como a Igreja
completa a obra redentora de Cristo. O mistério da Igreja — daquele Corpo
que completa também em si o corpo crucificado e ressuscitado de Cristo — indica,
ao mesmo tempo, aquele âmbito no qual os sofrimentos humanos completam o
sofrimento de Cristo. Só à luz disto e com esta dimensão — da Igreja-Corpo de
Cristo que se desenvolve continuamente no espaço e no tempo — é que se pode
pensar e falar «daquilo que falta» aos sofrimentos de Cristo. O Apóstolo, de
resto, sublinha-o claramente quando fala da necessidade de completar «aquilo
que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja».
A Igreja, precisamente, que
sem cessar vai haurir nos infinitos recursos da Redenção, introduzindo esta na
vida da humanidade, é a dimensão na qual o sofrimento redentor de Cristo
pode ser constantemente completado pelo sofrimento do homem. Nisto é posta
também em relevo a natureza divino-humana da Igreja. O sofrimento parece
participar, de certo modo, nas características desta natureza; e, por isso,
reveste-se também de um valor especial aos olhos da Igreja. É um bem, diante do
qual a Igreja se inclina com veneração, com toda a profundidade da sua fé na
Redenção. Inclina-se também diante dele com toda a profundidade daquela fé com
que acolhe em si mesma o inexprimível mistério do Corpo de Cristo.
VI - O EVANGELHO DO SOFRIMENTO
25. As testemunhas da Cruz e da
Ressurreição de Cristo transmitiram à Igreja e à humanidade um Evangelho
específico do sofrimento. O próprio Redentor escreveu este Evangelho; em
primeiro lugar, com o seu sofrimento assumido por amor, a fim de que o homem «não pereça, mas tenha a vida eterna».80(Jo
3,16) Este sofrimento, juntamente com a
palavra viva do seu ensino, tornou-se uma fonte abundante para aqueles que
participaram nos sofrimentos de Jesus na primeira geração dos seus discípulos e
confessores. E é consolador — como é também evangélica e historicamente exato —
notar que ao lado de Cristo, em primeiríssimo lugar e bem em evidência junto
dele, se encontra sempre a sua Mãe santíssima, porque com toda a sua vida
ela dá um testemunho exemplar deste particular Evangelho do sofrimento.
Em
Maria, os sofrimentos, numerosos e intensos, sucederam-se com tal conexão e
encadeamento, que bem demonstram a sua fé inabalável; e foram, além disso, uma
contribuição para a Redenção de todos. Na realidade, desde o colóquio misterioso
que teve com o anjo, Ela entrevê na sua missão de mãe a «destinação» de
compartilhar, de maneira única e irrepetível, a mesma missão do seu Filho. E
teve bem depressa a confirmação disso, quer nos acontecimentos que acompanharam
o nascimento de Jesus em Belém, quer no anúncio explícito de velho Simeão, que
lhe falou de uma espada bem afiada que haveria de trespassar-lhe a alma, quer,
ainda, na ansiedade e nas privações da fuga precipitada para o Egito, motivada
pela decisão cruel de Herodes.
E mais ainda: depois das
vicissitudes da vida oculta e pública do seu Filho, por ela certamente
partilhadas com viva sensibilidade, foi no Calvário que o sofrimento de Maria
Santíssima, conjunto ao de Jesus, atingiu um ponto culminante dificilmente
imaginável na sua sublimidade para o entendimento humano; mas, misterioso, por
certo sobrenaturalmente fecundo para os fins da salvação universal. A sua subida
ao Calvário e aquele seu «estar» aos pés da Cruz com o discípulo amado foram
uma participação muito especial na morte redentora do Filho, assim como as
palavras que ela pôde escutar dos lábios de Jesus foram como que a entrega
solene deste Evangelho particular, destinado a ser anunciado a toda a comunidade
dos fiéis.
Testemunha da paixão pela sua
presença, nela participante com a sua compaixão, Maria Santíssima
ofereceu uma contribuição singular ao Evangelho do sofrimento, realizando
antecipadamente aquilo que afirmaria São Paulo com as palavras citadas no início
desta reflexão. Sim, Ela tem títulos especialíssimos para poder afirmar que «completa na sua carne — como igualmente no seu coração — aquilo que falta aos
sofrimentos de Cristo».
À luz do inacessível exemplo de
Cristo que se reflete com uma evidência singular na vida da sua Mãe, o
Evangelho do sofrimento, através da experiência e da palavra dos Apóstolos,
torna-se fonte inexaurível para as gerações sempre novas, que se sucedem
na história da Igreja. O Evangelho do sofrimento significa não apenas a presença
do sofrimento no Evangelho, como um dos temas da Boa Nova, mas também a
revelação da força salvífica e do significado salvífico do sofrimento na
missão messiânica de Cristo e, em seguida, na missão e na vocação da Igreja.
Cristo não escondia aos seus
ouvintes a necessidade do sofrimento. Pelo contrário, dizia-lhes muito
claramente: «Se alguém quer vir após mim... tome a sua cruz todos os dias»;
81(Lc 9,23) e aos seus discípulos punha algumas exigências de ordem moral, cuja
realização só é possível se cada um se «renega a si mesmo». 82(Lc 9,23)
O caminho que
conduz ao reino dos céus é «estreito e apertado»; e Cristo contrapõe-no ao
caminho «largo e espaçoso» que, porém, «leva à perdição». 83(cf. Mt 7,13-14) Diversas
vezes Cristo disse também que os seus discípulos e confessores haveriam de
encontrar muitas perseguições; o que — como se sabe — aconteceu, não só nos
primeiros séculos da vida da Igreja, nos tempos do império romano, mas não
cessou de se verificar também em diversos outros períodos da história e em
diversos lugares da terra, mesmo nos nossos dias.
Eis aqui algumas frases de Cristo
sobre este tema: «Deitar-vos-ão as mãos e perseguir-vos-ão, entregando-vos às
sinagogas, e metendo-vos nos cárceres, arrastando-vos à presença de reis e de
governadores, por causa do meu nome; isso proporcionar-vos-á ocasião para
dardes testemunho de mim. Gravai, pois, no vosso coração que não deveis
preparar a vossa defesa, porque eu vos darei língua e sabedoria tais a que não
poderão contrastar nem contradizer os vossos adversários. Sereis traídos até
pelos vossos pais, pelos irmãos, pelos parentes e amigos, e causarão a morte a
alguns de vós. Sereis odiados por todos por causa do meu nome; mas nem um
só cabelo da vossa cabeça se perderá. Pela vossa constância ganhareis as vossas
almas». 84(Lc 21,12-19)
O Evangelho do sofrimento fala em
diversos pontos, primariamente, do sofrimento «por Cristo», «por causa de
Cristo»; e isto é expresso com as próprias palavras de Jesus, ou então com as
palavras dos seus Apóstolos. O Mestre não esconde aos seus discípulos e àqueles
que o seguirão a perspectiva de um tal sofrimento; pelo contrário, apresenta-lha
com toda a franqueza, indicando-lhes ao mesmo tempo as forças sobrenaturais que
os acompanharão no meio das perseguições e tribulações sofridas «pelo seu nome». Estas serão, ao mesmo tempo, como que um meio especial de verificar a
semelhança a Cristo e a união com ele. «Se o mundo vos odeia, ficai sabendo
que, primeiro do que a vós, me odiou a mim...; mas porque não sois do mundo — ao
contrário, eu vos separei do meio do mundo — por isso é que o mundo vos odeia...
O servo não é maior que o seu senhor. Se a mim me perseguiram, também vos hão-de
perseguir a vós... Mas farão tudo isso contra vós por causa do meu nome, porque
não conhecem Aquele que me enviou». 85(Jo 15,18-21).
«Disse-vos isto para que tenhais
paz em mim: no mundo tereis que sofrer. Mas tende confiança! Eu venci o mundo».
86(Jo 16,33).
Este primeiro capítulo do Evangelho
do sofrimento, que fala das perseguições, isto é, das tribulações por causa de
Cristo, contém em si um chamamento especial à coragem e à fortaleza,
apoiado pela eloqüência da Ressurreição. Cristo venceu definitivamente o mundo
com a sua ressurreição; todavia, porque a sua ressurreição está ligada à sua
paixão e morte, ele venceu este mundo, ao mesmo tempo, com o seu sofrimento.
Sim, o sofrimento foi inserido de um modo singular naquela vitória sobre o mundo
que se manifestou na ressurreição. Cristo conserva no seu corpo ressuscitado os
sinais das feridas causadas pelo suplício da Cruz: nas suas mãos, nos seus pés e
no seu lado. Pela ressurreição, ele manifesta a força vitoriosa do
sofrimento; e quer incutir a convicção desta força no coração daqueles que
escolheu como seus Apóstolos e daqueles que ele continua a escolher e a enviar.
O Apóstolo Paulo dirá: «Todos aqueles que querem viver piedosamente em Jesus
Cristo serão perseguidos».87(2Tm 3,12).
26. Se é verdade que o primeiro
grande capítulo do Evangelho do sofrimento vai sendo escrito ao longo das
gerações, por aqueles que sofrem perseguições por Cristo, também é verdade que a
«pari passu» com ele um outro grande capítulo deste Evangelho do sofrimento se
vai desenrolando ao longo da história. Escrevem-no todos aqueles que sofrem
com Cristo, unindo os próprios sofrimentos humanos ao seu sofrimento
salvífico. Neles se realiza aquilo que as primeiras testemunhas da Paixão e da
Ressurreição disseram e escreveram acerca da participação nos sofrimentos de
Cristo. Neles se realiza, por conseguinte, o Evangelho do sofrimento; e, ao
mesmo tempo, cada um deles continua, de certo modo, a escrevê-lo: escreve-o e
proclama-o ao mundo, anuncia-o no próprio ambiente e aos homens seus
contemporâneos.
No decorrer dos séculos e das
gerações, tem-se comprovado que no sofrimento se esconde uma força
particular que aproxima interiormente o homem de Cristo, uma graça
particular. A esta ficaram a dever a sua profunda conversão muitos Santos como,
por exemplo, São Francisco de Assis, Santo Inácio de Loiola etc. O fruto de
semelhante conversão é não apenas o fato de que o homem descobre o sentido
salvífico do sofrimento, mas sobretudo que no sofrimento ele se torna um homem
totalmente novo. Encontra como que uma maneira nova para avaliar toda a sua
vida e a própria vocação. Esta descoberta constitui uma confirmação
particular da grandeza espiritual que no homem supera o corpo de um modo
totalmente incomparável. Quando este corpo está gravemente doente, ou mesmo
completamente inutilizado, e o homem se sente como que incapaz de viver e agir,
é então que se põem mais em evidência a sua maturidade interior e grandeza
espiritual; e estas constituem uma lição comovedora para as pessoas sãs e
normais.
Esta maturidade interior e grandeza
espiritual no sofrimento são fruto, certamente, de uma particular
conversão e cooperação com a graça do Redentor crucificado. É Ele próprio a
agir, no mais vivo do sofrimento humano, por meio do seu Espírito de Verdade, do
Espírito Consolador. É Ele que transforma, em certo sentido, a própria
substância da vida espiritual, indicando à pessoa que está a sofrer um lugar
perto de si. É Ele — como Mestre e Guia interior — que ensina ao
irmão e à irmã que sofrem esta admirável permuta, que se situa no coração
do mistério da Redenção. O sofrimento é, em si mesmo, experimentar o mal; mas
Cristo fez dele a base mais sólida do bem definitivo, ou seja, do bem da
salvação eterna.
Com o seu sofrimento na Cruz, Cristo atingiu as próprias raízes
do mal: as raízes do pecado e da morte. Ele venceu o autor do mal, que é Satanás
com a sua permanente rebelião contra o Criador. Perante o irmão ou a irmã que
sofrem, Cristo abre e descobre gradualmente os horizontes do reino de
Deus: os horizontes de um mundo convertido ao Criador, de um mundo liberto
do pecado, que se vai edificando, alicerçado no poder salvífico do amor. E,
lenta mas eficazmente, Cristo introduz neste mundo, neste reino do Pai, o homem
que sofre, através, em certo sentido, do coração do seu sofrimento. De fato, o
sofrimento não pode ser transformado e mudado por uma graça que aja do
exterior, mas sim por uma graça interior. Cristo, mediante o seu próprio
sofrimento salvífico encontra-se bem dentro de cada sofrimento humano, e pode
assim atuar a partir do interior do mesmo, pelo poder do seu Espírito de
Verdade, do seu Espírito Consolador.
E não é tudo: o divino Redentor quer
penetrar no ânimo de todas a pessoas que sofrem, através do coração da sua Mãe
Santíssima, primícia e vértice de todos os redimidos. Como que a prolongar
aquela maternidade, que por obra do Espírito Santo lhe havia dado a vida, Cristo
ao morrer conferiu à sempre Virgem Maria uma nova maternidade —
espiritual e universal — em relação a todos os homens, a fim de que cada um
deles, na peregrinação da fé, à semelhança e junto com Maria, lhe permanecesse
intimamente unido até à Cruz; e assim, todo o sofrimento, regenerado pela
virtude da Cruz, de fraqueza do homem se tornasse poder de Deus.
Entretanto, este processo interior
não se realiza sempre da mesma maneira. Ele inicia-se e estabiliza-se, não raro,
com dificuldade. O próprio ponto de partida já é diverso, pois é com disposições
diferentes que o homem encara o estado de sofrimento. Pode-se todavia admitir
que as pessoas quase sempre entram no sofrimento com uma queixa tipicamente
humana e com a pergunta sobre o seu «porquê».
Interrogam-se sobre o
sentido do sofrimento e procuram uma resposta à pergunta no seu plano humano.
Por certo, fazem muitas vezes esta pergunta também a Deus, e fazem-na igualmente
a Cristo. Além disso, não podem deixar de se aperceber de que Aquele a quem
fazem a sua pergunta também Ele sofre e quer responder-lhes da Cruz,
do meio do seu próprio sofrimento. Contudo, por vezes é necessário tempo,
muito tempo mesmo, para que esta resposta comece a ser percebida interiormente.
Cristo, de fato, não responde diretamente e não responde de modo abstrato a
esta pergunta humana sobre o sentido do sofrimento. O homem percebe a sua
resposta salvífica à medida que se vai tornando ele próprio participante dos
sofrimentos de Cristo.
A resposta que lhe chega mediante
essa participação, ao longo da caminhada de encontro interior com o Mestre, é,
por sua vez, algo mais do que a simples resposta abstrata à pergunta
sobre o sentido do sofrimento. Tal resposta é, sobretudo, um apelo. É uma
vocação. Cristo não explica abstratamente as razões do sofrimento; mas, antes
de mais nada, diz: «Segue-me!». Vem! Participa com o teu sofrimento nesta obra
da salvação do mundo, que se realiza por meio do meu próprio sofrimento! Por
meio da minha Cruz. A medida que o homem toma a sua cruz, unindo-se
espiritualmente à Cruz de Cristo, vai-se-lhe manifestando mais o sentido
salvífico do sofrimento. O homem não descobre este sentido ao seu nível humano,
mas ao nível do sofrimento de Cristo. Ao mesmo tempo, porém, deste plano em que
Cristo se situa, este sentido salvífico do sofrimento desce ao nível do
homem, e torna-se, de algum modo, a sua resposta pessoal. E é então que o
homem encontra no seu sofrimento a paz interior e mesmo a alegria espiritual.
27. Desta alegria fala o Apóstolo na
Carta aos Colossenses: «Alegro-me nos sofrimentos suportados por vossa causa...». 88(Cl
1,24) Torna-se fonte de alegria o superar o sentimento da inutilidade do
sofrimento, sensação que, por vezes, está profundamente arraigada no
sofrimento humano; e isto, não só desgasta o homem por dentro, mas parece fazer
dele um peso para os outros. O homem sente-se condenado a receber ajuda e
assistência da parte dos outros e, ao mesmo tempo, considera-se a si mesmo
inútil. A descoberta do sentido salvífico do sofrimento em união com Cristo
transforma esta sensação deprimente.
A fé na participação nos sofrimentos de
Cristo traz consigo a certeza interior de que o homem que sofre «completa o que
falta aos sofrimentos do mesmo Cristo», e de que, na dimensão espiritual da
obra da Redenção, serve, como Cristo, para a salvação dos seus irmãos e
irmãs. Portanto, no só é útil aos outros, mas presta-lhes ainda um serviço
insubstituível. No Corpo de Cristo, que cresce sem cessar a partir da Cruz do
Redentor, precisamente o sofrimento, impregnado do espírito de Cristo, é o
mediador insubstituível e autor dos bens indispensáveis para a salvação do
mundo.
Mais do que qualquer outra coisa, o sofrimento é aquilo que abre caminho
à graça que transforma as almas humanas. Mais do que qualquer outra coisa, é ele
que torna presentes na história da humanidade as forças da Redenção. Naquela
luta «cósmica» que se trava entre as forças espirituais do bem e as do mal, de
que fala a Carta aos Efésios, 89(cf Ef 6,12) os sofrimentos humanos, unidos ao sofrimento
redentor de Cristo, constituem um apoio particular às forças do bem,
abrindo caminho à vitória destas forças salvíficas.
E por isso a Igreja vê em todos os
irmãos e irmãs de Cristo que sofrem como que um sujeito multíplice da sua
força sobrenatural. Quantas vezes os pastores da Igreja recorrem
precisamente a eles e procuram concretamente neles ajuda e apoio! O Evangelho do
sofrimento vai sendo escrito, sem cessar, e fala constantemente com as palavras
deste estranho paradoxo: as fontes da força divina jorram exatamente do seio da
fraqueza humana. Aqueles que participam nos sofrimentos de Cristo conservam nos
sofrimentos próprios uma especialíssima parcela do infinito tesouro da
Redenção do mundo, e podem partilhar este tesouro com os outros. Quanto mais o
homem se vê ameaçado pelo pecado, quanto mais se apresentam pesadas as
estruturas do pecado que comporta o mundo de hoje, maior é a eloqüência que o
sofrimento humano encerra em si mesmo e tanto mais a Igreja sente a necessidade
de recorrer ao valor dos sofrimentos humanos para a salvação do mundo.
VII - O BOM SAMARITANO
28. A parábola do Bom Samaritano
pertence também — e de modo orgânico — ao Evangelho do sofrimento. Nesta
parábola Cristo quis dar uma resposta à pergunta «quem é o meu próximo?».90(Lc
10,29)
De fato, dos três que passavam pela estrada de Jerusalém a Jericó, à beira da
qual jazia por terra, meio morto, um homem roubado e ferido pelos ladrões, foi
exatamente o Samaritano quem demonstrou ser na verdade «próximo»
daquele infeliz: «próximo» significa também aquele que cumpriu o
mandamento do amor ao próximo.
Outros dois homens seguiam o mesmo caminho; um
era sacerdote e o outro levita; mas ambos «o viram e passaram adiante». O
Samaritano, ao contrário, «tendo-o visto, encheu-se de compaixão. Aproximou-se,
pensou-lhe as feridas», e depois «levou-o para uma estalagem e prestou-lhe
assistência». 91(Lc 10,33,34). E, ao ir-se embora, confiou aos cuidados do hospedeiro o
homem que estava a sofrer, comprometendo-se a pagar-lhe o que fosse preciso.
A parábola do Bom Samaritano
pertence ao Evangelho do sofrimento. Ela indica, de fato, qual deva ser a
relação de cada um de nós para com o próximo que sofre. Não nos é permitido «passar adiante», com indiferença; mas devemos
«parar» junto dele.
Bom Samaritano é todo o homem que se detém junto ao sofrimento de um outro homem,
seja qual for o sofrimento. Parar, neste caso, não significa curiosidade,
mas disponibilidade. Esta é como que o abrir-se de uma disposição interior do
coração, que também tem a sua expressão emotiva. Bom Samaritano é todo o
homem sensível ao sofrimento de outrem, o homem que «se comove» diante da
desgraça do próximo. Se Cristo, conhecedor do intimo do homem, põe em realce
esta comoção, quer dizer que ela é importante para todo o nosso modo de
comportar-nos diante do sofrimento de outrem. É necessário, portanto, cultivar
em si próprio esta sensibilidade do coração, que se demonstra na compaixão
por quem sofre. Por vezes esta compaixão acaba por ser a única ou a
principal expressão do nosso amor e da nossa solidariedade com o homem que
sofre.
O Bom Samaritano da parábola de
Cristo não se limita, todavia, à simples comoção e compaixão. Estas
transformam-se para ele num estímulo para as ações que tendem a prestar ajuda
ao homem ferido. Bom Samaritano, portanto, é, afinal, todo aquele que presta
ajuda no sofrimento, seja qual for a sua espécie; uma ajuda, quanto
possível, eficaz. Nela põe todo o seu coração, sem poupar nada, nem sequer os
meios materiais. Pode-se dizer mesmo que se dá a si próprio, o seu próprio «eu», ao outro. Tocamos aqui um dos pontos-chave de toda a antropologia cristã. O
homem «não pode encontrar a sua própria plenitude a não ser no dom sincero de
si mesmo». 92(Gaudium et Spes, 24) Bom Samaritano é o homem capaz, exatamente, de um
tal dom de si mesmo.
29. Seguindo a parábola evangélica,
poder-se-ia dizer que o sofrimento, presente no nosso mundo humano sob tantas
formas diversas, também aí está presente para desencadear no homem o amor,
precisamente esse dom desinteressado do próprio «eu» em favor dos outros
homens, dos homens que sofrem. O mundo do sofrimento humano almeja sem cessar,
por assim dizer, outro mundo diverso: o mundo do amor humano; e aquele amor
desinteressado que vem do coração e transparece nas ações da pessoa que sofre;
amor que esta deve, aliás, em certo sentido ao sofrimento. O homem que é o «próximo» não pode passar com indiferença diante do sofrimento de outrem; e
isso, por motivo da solidariedade humana fundamental e em nome do amor ao
próximo.
Deve «parar», «deixar-se comover», como fez o Samaritano da
parábola evangélica. Esta parábola, em si mesma, exprime uma verdade
profundamente cristã e, ao mesmo tempo, muitíssimo humana universalmente.
Não é sem motivo que até na linguagem corrente se designa obra de «bom
samaritano» qualquer atividade em favor dos homens que sofrem ou precisam de
ajuda.
Esta atividade adota, ao
longo dos séculos, formas institucionais organizadas e constitui um campo
de trabalho nas respectivas profissões. Quanto de «bom samaritano» têm
as profissões do médico ou a da enfermeira, ou outras similares! Em virtude do
conteúdo «evangélico» que nelas se encerra, somos inclinados a pensar, nestes
casos, mais em vocação do que em simples profissão.
E as instituições que, no
decorrer das gerações, realizaram um serviço de «bom samaritano»,
desenvolveram-se e especializaram-se ainda mais nos nossos dias. Isto prova, sem
sombra de dúvida, que o homem de hoje se detém cada vez com maior atenção a
perspicácia junto aos sofrimentos do próximo, tenta compreendê-los e
precavê-los, de modo cada vez mais preciso, e conquista também, cada vez mais,
capacidade e especialização neste setor. Tendo presente tudo isto, podemos
dizer que a parábola do Samaritano do Evangelho se tornou uma das componentes
essenciais da cultura moral e da civilização universalmente humana. E
pensando em todas aquelas pessoas que, com a sua ciência e capacidade, prestam
múltiplos serviços ao próximo que sofre, não podemos deixar de ter para com elas
uma palavra de reconhecimento e de gratidão.
Esta palavra estende-se a todos
aqueles que exercem o próprio serviço para com o próximo que sofre, de maneira
desinteressada, aplicando-se voluntariamente em dar ajuda de «bom samaritano» e destinando a essa causa todo o tempo e forças que lhes ficam do trabalho
profissional. Tal atividade espontânea como «bom samaritano», ou caritativa,
pode ser chamada atividade social; e pode também ser definida como
apostolado quando é empreendida por motivos lidimamente evangélicos,
sobretudo quando isso sucede em ligação com a Igreja ou com uma outra Comunidade
cristã. A atividade voluntária de «bom samaritano» realiza-se nas
instituições e meios apropriados, ou então através de organizações
criadas para determinado fim. Estas formas de atuação têm grande importância,
especialmente quando se trata de assumir tarefas de maior vulto, que exijam
cooperação e uso de meios técnicos.
Permanece não menos valiosa também a
atividade individual, especialmente a atividade daquelas pessoas que se sentem
mais aptas para cuidarem de certas espécies de sofrimento humano, a que não se
pode dar ajuda senão individual e pessoalmente. Depois há a ajuda familiar,
que compreende quer os atos de amor ao próximo feitos em benefício dos
membros da própria família, quer a ajuda recíproca entre as famílias.
É difícil apresentar um elenco de
todos os gêneros e de todas as esferas da atividade de «bom samaritano» que
existem na Igreja e na sociedade. Importa pelo menos reconhecer que são muito
numerosos e, por isso, exprimir alegria; com efeito, graças a eles, os
valores morais fundamentais, como o valor da solidariedade humana, o valor
do amor cristão ao próximo, compõem o quadro da vida social e das relações
inter-humanas e aí fazem frente às diversas formas do ódio, da violência, da
crueldade, do desprezo pelo homem, ou até da simples «insensibilidade», ou
seja, da indiferença para com o próximo e os seus sofrimentos.
Neste ponto é para salientar o
grandíssimo significado das atitudes que convém adotar na educação. A
família, a escola e as outras instituições educativas — ainda que seja somente
por motivos humanitários — devem trabalhar com perseverança no sentido de
despertar e apurar aquela sensibilidade para com o próximo e o seu sofrimento,
de que se tornou símbolo a figura do Samaritano do Evangelho. A Igreja deve
fazer o mesmo, como é óbvio; e, se for possível, ajudar a aprofundar ainda mais
tal sentido, com a perscrutação das motivações que Cristo apresentou na sua
parábola e em todo o Evangelho.
A eloqüência da parábola do Bom Samaritano —
como de todo o Evangelho, de resto — está sobretudo nisto: o homem deve
sentir-se como que chamado, de maneira muito pessoal, a testemunhar o
amor no sofrimento. As instituições são muito importantes e indispensáveis; no
entanto, nenhuma instituição, só por si, pode substituir o coração humano, a
compaixão humana, o amor humano, a iniciativa humana, quando se trata de ir ao
encontro do sofrimento de outrem. Isto é válido pelo que se refere aos
sofrimentos físicos; mas é mais válido ainda quando se trata dos múltiplos
sofrimentos morais e, sobretudo, quando é a alma que está a sofrer.
30. A parábola do Bom Samaritano
que, como foi dito, pertence sem dúvida ao Evangelho do sofrimento, com ele tem
caminhado ao longo da história da Igreja e do Cristianismo e ao longo da
história do homem e da humanidade. Ela testemunha que a revelação, feita por
Cristo, do sentido salvífico do sofrimento, não o identifica, de forma
alguma, com um comportamento de passividade. Muito pelo contrário. O
Evangelho é a negação da passividade diante do sofrimento. O próprio Cristo,
neste aspecto, é sobretudo ativo. E assim, realiza o programa messiânico da sua
missão em conformidade com as palavras do Profeta: «O Espírito do Senhor está
sobre mim; porque me conferiu a unção e me enviou para anunciar aos pobres a boa
nova, para anunciar aos cativos a libertação e aos cegos o dom da vista; para
pôr em liberdade os oprimidos e promulgar um ano de graça da parte do Senhor».
93(Lc 4,18-19; cf Is 61,1-2)
Cristo realiza de modo superabundante este programa messiânico da
sua missão: passa «fazendo o bem»; 94(At 10,38) e o bem resultante das suas obras
assumiu grande realce sobretudo diante do sofrimento humano. A paráboIa do Bom
Samaritano está em profunda harmonia com o comportamento do próprio Cristo.
Esta parábola, por fim, quanto ao
seu conteúdo, tem cabimento naquelas inquietantes palavras do juízo final, que
São Mateus recolheu no seu Evangelho: «Vinde, benditos de meu Pai, entrai na
posse do reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome
e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber; era peregrino e destes-me
hospedagem, andava nu e vestistes-me, estava doente e visitastes-me, estava no
cárcere e fostes ver-me». 95(Mt 25,34-36) Aos justos que perguntam quando fizeram
precisamente a ele tudo isso, o Filho do Homem responderá: «Em verdade vos digo
que tudo o que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o
fizestes». 96(Mt 25,40) Sentença contrária caberá àqueles que se houverem
comportado diversamente: «tudo o que não fizestes a um destes pequeninos a mim
deixastes de o fazer». 97(Mt 25,45)
Poder-se-ia certamente ampliar a
lista dos sofrimentos que encontraram eco na sensibilidade humana, na compaixão
e na ajuda, ou que não o encontraram. A primeira e a segunda parte da declaração
de Cristo sobre o juízo final indicam, sem ambigüidade, quanto são essenciais
para todos os homens, na perspectiva da vida eterna, o «parar», como fez o Bom
Samaritano, junto do sofrimento do seu próximo, o ter «compaixão» dele, e, por
fim, ajudá-lo.
No programa messiânico de Cristo, que é ao mesmo tempo o programa
do reino de Deus, o sofrimento está presente no mundo para desencadear o
amor, para fazer nascer obras de amor para com o próximo, para transformar toda
a civilização humana na «civilização do amor». Com este amor é que o
significado salvífico do sofrimento se realiza totalmente e atinge a sua
dimensão definitiva. As palavras de Cristo sobre a juízo final permitem
compreender isto, com toda a simplicidade e clareza típicas do Evangelho.
Estas palavras sobre o amor, sobre
os atos de caridade relacionados com o sofrimento humano, permitem-nos
descobrir, uma vez mais, por detrás de todos os sofrimentos humanos, o
próprio sofrimento redentor de Cristo. O mesmo Cristo diz: «A mim o
fizestes». É Ele próprio quem, em cada um, experimenta o amor; é Ele próprio
quem recebe ajuda, quando ela é prestada a quem quer que sofra, sem exceção. Ele
próprio está presente em quem sofre, pois o seu sofrimento salvífico foi aberto
de uma vez para sempre a todo o sofrimento humano. E todos os que sofrem foram
chamados, de uma vez sempre, a tornarem-se participantes «dos sofrimentos de
Cristo». 98(1Pd 4,13)
Assim como todos foram chamados a
«completar» com o próprio
sofrimento «o que falta aos sofrimentos de Cristo». 99(Cl 1,24) Cristo ensinou o
homem a fazer bem com o sofrimento e, ao mesmo tempo, a fazer bem a
quem sofre. Sob este duplo aspecto, revelou cabalmente o sentido do
sofrimento.
VIII
CONCLUSÃO
31. Tal é o sentido do sofrimento:
verdadeiramente sobrenatural e, ao mesmo tempo, humano; é sobrenatural,
porque se radica no mistério divino da Redenção do mundo; e é também
profundamente humano, porque nele o homem se aceita a si mesmo, com a sua
própria humanidade, com a própria dignidade e a própria missão.
O sofrimento faz parte, certamente,
do mistério do homem.
Talvez não esteja tão envolvido como o mesmo homem por
este mistério, que é particularmente impenetrável. O Concílio Vaticano II
exprimiu esta verdade assim: «na realidade, só no mistério do Verbo Encarnado
encontra verdadeira luz o mistério do homem. Com efeito..., Cristo, que é
o novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai o do Seu amor, também
manifesta plenamente o homem ao homem e descobre-lhe a sublimidade da sua
vocação». 100(Gaudium et spes, 22) Se é verdade que estas palavras dizem respeito a tudo o que
concerne o mistério do homem, então elas referem-se de modo particularíssimo,
certamente, ao sofrimento humano. Quanto a este ponto, o «revelar o
homem ao homem e descobrir-lhe a sublimidade de sua vocação» é sobremaneira
indispensável.
Acontece porém — como a experiência demonstra — isso ser
particularmente dramático. Mas quando se realiza totalmente e se
transforma em luz para a vida humana, é também particularmente
bem-aventurante. «Por Cristo e em Cristo se esclarece o enigma da dor e da
morte». 101(Gaudium et spes, 22).
Concluímos as presentes
considerações sobre o sofrimento no ano em que a Igreja está a viver o Jubileu
extraordinário, relacionado com o aniversário da Redenção.
O mistério da Redenção do mundo está
radicado no sofrimento de modo maravilhoso; e o sofrimento, por sua vez,
tem nesse mistério o seu supremo e mais seguro ponto de referência.
Desejamos viver este ano da Redenção
numa união especial com todos os que sofrem. É necessário pois, que se
congreguem em espírito, junto à Cruz do Calvário, todos aqueles que sofrem e
acreditam em Cristo; e, especialmente, aqueles que sofrem por causa da sua fé
n'Ele, Crucificado e Ressuscitado, a fim de que o oferecimento dos seus
sofrimentos apresse o realizar-se da oração do mesmo Salvador pela unidade de
todos. 102(cf Jo 17,11.21-22). Que para lá afluam também os homens de boa vontade, porque na Cruz
está o «Redentor do homem», o Homem das dores, que assumiu sobre si os
sofrimentos físicos e morais dos homens de todos os tempos, para que estes
possam encontrar no amor o sentido salvífico dos próprios sofrimentos e
respostas válidas para todas as suas interrogações.
Com Maria, Mãe de Cristo, que
estava de pé junto à Cruz, 103(cf Jo 19,25) nós detemos-nos junto a todas as cruzes
do homem de hoje.
Invocamos todos os Santos,
que no decorrer dos séculos foram de modo especial participantes nos sofrimentos
de Cristo. Pedimos a sua proteção.
E pedimos a todos vós que
sofreis, que nos ajudeis. Precisamente a vós, que sois fracos, pedimos que
vos torneis uma fonte de força para a Igreja e para a humanidade. Na
terrível luta entre as forças do bem e do mal, de que o nosso mundo
contemporâneo nos oferece o espetáculo, que vença o vosso sofrimento em união
com a Cruz de Cristo!
A todos, caríssimos Irmãos e Irmãs,
envio a minha Bênção Apostólica.
Dado em Roma, junto de São Pedro,
na memória litúrgica de Nossa Senhora de Lourdes, a 11 de Fevereiro do ano de
1984, sexto do meu Pontificado.
6) As Hagar feared (cf. Gn. 1-16), as Jacob
imagined (cf. Gn. 37:33-35), as David experienced (cf. 2 Sm. 19:1).
7) As Anna, the mother of Tobias, feared (cf. Tb.
10:1-7); cf. also Jer. 6:26; Am. 8:10; Zec. 12:10.
8) Such was the trial of Abraham (cf. Gn. 15:2),
of Rachel (cf. Gn. 30:1), or of Anna, the mother of Samuel (cf. 1 Sm. 1:10).
9) Such was the lament of the exiles in Babylon
(cf. Ps. 137[136] ).
10) Suffered, for example, by the Psalmist (cf.
Ps. 22[21]:17-21) or by Jeremiah (cf. Jer. 18:18).
11) This was a trial for Job (cf. Jb. 19:18;
3():1, 9), for some Psalmists (cf. Ps. 22[21]:7-9; 42[41]:11; 44[43]:16-17),
for Jeremiah (cf. Jer. 20:7), for the Suffering Servant (cf. Is. 53:3).
12) Which certain Psalmists had to suffer again
(cf. Ps. 22[21]:2-3; 31[30]:13; 38[37]:12; 88[87]:9.19), Jeremiah (cf. Jer.
15:17), or the Suffering Servant (cf: Is. 53:3).
13) Of the Psalmist (cf. Ps. 51[50]:5), of the
witnesses of the sufferings of the Servant (cf. Is. 53:3-6), of the prophet
Zechariah (cf. Zec. 12:10).
14) This was strongly felt by the Psalmist (cf.
Ps. 73[72]:3-14), and Qoheleth (cf. Eccl. 4:1-3).
15) This was a suffering for Job (cf. Jb. 10:19),
for certain Psalmists (cf. Ps. 41[40] :10; 55[54]:13-15, for Jeremiah (cf.
Jer. 20:10), while Sirach meditated on this misery (cf. Sir. 37:1-6)
16) Besides numerous passages of Lamentations, cf.
the laments of the Psalmists (cf. Ps. 44[43]:10-17; 77[76]:11; 89[88]:51),
or of the Prophets (cf. Is. 22:4; Jer. 4:8; 13:17; 14:17-18; Ez. 9:8;
21:11-12); also cf. the prayers of Azariah (cf. Dn. 3:31-40) and of Daniel
(cf. Dn. 9:16-19).
17) For example, Is. 38:13; Jer. 23:9; Ps.
31[30]:10-11; Ps. 42[41]:10-11 .
18) For example, Ps. 73[72]:21; Jb. 16:13; Lam.
3:13.
19) For example, Lam. 2:11.
20) For example, Is. 16:11; Jer. 4:I[9]; Jb.
30:27; Lam. 1:20.
21) For example, 1 Sm. 1:8; Jer. 4:19; 8:18; Lam.
1:20, 22; Ps. 38[37]:9, 11.
22) In this regard, it is useful to remember that
the Hebrew root r designates in a comprehensive way what is evil, as
opposed to what is good (tob) without distinguishing between the physical, psychological and ethical
senses. The root is found in the substantive form ra' and ra‘a
indicating indifferently either evil in itself, or the evil action, or the
individual who does it. In the verbal forms, besides the simple one (qal)
variously designating being evil, there are the reflexive passive form (niphal)
to endure evil, to be affected by evil and the causative form (hiphil)
to do evil, to inflict evil on someone. Since the Hebrew lacks a true
equivalent to the Greek pascw, I suffer, this
verb too occurs rarely in the Septuagint translation.
Porque virá tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, ao sabor das paixões, amontoa- rão para si mestres, conforme suas próprias concupiscências e des- viarão os ouvidos da verdade, voltando às fábulas".(2Tm 4,3-4).