"Maldito aquele que faz com negligência a obra do Senhor!"(Jr 48,10).
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Evangelium Vitae
Carta Encíclica
EVANGELIUM VITAE
DO Sumo Pontífice João Paulo II
aos Presbíteros e Diáconos, aos Religiosos e Religiosas,
aos Fiéis
Leigos e a todas as Pessoas de Boa Vontade
Sobre o Valor e Inviolabilidade da
Vida Humana
INTRODUÇÃO
1. O Evangelho da vida está no centro da mensagem de Jesus. Amorosamente
acolhido cada dia pela Igreja, há-de ser fiel e corajosamente anunciado como
boa nova aos homens de todos os tempos e culturas. Na aurora da salvação, é
proclamado como feliz notícia o nascimento de um menino: « Anuncio-vos uma
grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David,
nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, Senhor » (Lc 2, 10-11). O motivo
imediato que faz irradiar esta « grande alegria » é, sem dúvida, o
nascimento do Salvador; mas, no Natal, manifesta-se também o sentido pleno de
todo o nascimento humano, pelo que a alegria messiânica se revela fundamento e
plenitude da alegria por cada criança que nasce (cf. Jo 16, 21). Ao apresentar
o núcleo central da sua missão redentora, Jesus diz: « Eu vim para que tenham
vida, e a tenham em abundância » (Jo 10, 10). Ele fala daquela vida « nova »
e « eterna » que consiste na comunhão com o Pai, à qual todo o homem é
gratuitamente chamado no Filho, por obra do Espírito Santificador. Mas é
precisamente em tal « vida » que todos os aspectos e momentos da vida do homem
adquirem pleno significado.
O valor incomparável da pessoa humana
2. O homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende muito para além
das dimensões da sua existência terrena, porque consiste na participação da
própria vida de Deus. A sublimidade desta vocação sobrenatural revela a
grandeza e o valor precioso da vida humana, inclusive já na sua fase temporal.
Com efeito, a vida temporal é condição basilar, momento inicial e parte
integrante do processo global e unitário da existência humana: um processo
que, para além de toda a expectativa e merecimento, fica iluminado pela
promessa e renovado pelo dom da vida divina, que alcançará a sua plena realização
na eternidade (cf. 1 Jo 3,1-2). Ao mesmo tempo, porém, o próprio chamamento
sobrenatural sublinha a relatividade da vida terrena do homem e da mulher. Na
verdade, esta vida não é realidade « última », mas « penúltima »;
trata-se, em todo o caso, de uma realidade sagrada que nos é confiada para a
guardarmos com sentido de responsabilidade e levarmos à perfeição no amor
pelo dom de nós mesmos a Deus e aos irmãos. A Igreja sabe que este Evangelho
da vida, recebido do seu Senhor,1 encontra um eco profundo e persuasivo no coração
de cada pessoa, crente e até não crente, porque se ele supera infinitamente as
suas aspirações, também lhes corresponde de maneira admirável. Mesmo por
entre dificuldades e incertezas, todo o homem sinceramente aberto à verdade e
ao bem pode, pela luz da razão e com o secreto influxo da graça, chegar a
reconhecer, na lei natural inscrita no coração (cf. Rm 2, 14-15), o valor
sagrado da vida humana desde o seu início até ao seu termo, e afirmar o
direito que todo o ser humano tem de ver plenamente respeitado este seu bem primário.
Sobre o reconhecimento de tal direito é que se funda a convivência humana e a
própria comunidade política. De modo particular, devem defender e promover
este direito os crentes em Cristo, conscientes daquela verdade maravilhosa,
recordada pelo Concílio Vaticano II: « Pela sua encarnação, Ele, o Filho de
Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem ».2 De fato, neste acontecimento da
salvação, revela-se à humanidade não só o amor infinito de Deus que « amou
de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único » (Jo 3, 16), mas também o
valor incomparável de cada pessoa humana. A Igreja, perscrutando assiduamente o
mistério da Redenção, descobre com assombro incessante 3 este valor, e
sente-se chamada a anunciar aos homens de todos os tempos este « evangelho »,
fonte de esperança invencível e de alegria verdadeira para cada época da história.
O Evangelho do amor de Deus pelo homem, o Evangelho da dignidade da pessoa e o
Evangelho da vida são um único e indivisível Evangelho. É por este motivo
que o homem, o homem vivo, constitui o primeiro e fundamental caminho da
Igreja.4
As novas ameaças à vida humana
3. Precisamente por causa do mistério do Verbo de Deus que Se fez carne (cf. Jo
1, 14), cada homem está confiado à solicitude materna da Igreja. Por isso,
qualquer ameaça à dignidade e à vida do homem não pode deixar de se
repercutir no próprio coração da Igreja, é impossível não a tocar no
centro da sua fé na encarnação redentora do Filho de Deus, não pode passar
sem a interpelar na sua missão de anunciar o Evangelho da vida pelo mundo
inteiro a toda a criatura (cf. Mc 16,15). Hoje, este anúncio torna-se
particularmente urgente pela impressionante multiplicação e agravamento das
ameaças à vida das pessoas e dos povos, sobretudo quando ela é débil e
indefesa. Às antigas e dolorosas chagas da miséria, da fome, das epidemias, da
violência e das guerras, vêm-se juntar outras com modalidades inéditas e
dimensões inquietantes. Já o Concílio Vaticano II, numa página de dramática
atualidade, deplorou fortemente os múltiplos crimes e atentados contra a vida
humana. À distância de trinta anos e fazendo minhas as palavras da Assembléia
Conciliar, uma vez mais e com idêntica força os deploro em nome da Igreja
inteira, com a certeza de interpretar o sentimento autêntico de toda a consciência
rata: « Tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio,
genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a
integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e
mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto
ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas,
as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o
comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de
trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e
não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras
semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização
humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem
injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador ».5
4. Infelizmente, este panorama inquietante, longe de diminuir, tem vindo a
dilatar-se: com as perspectivas abertas pelo progresso científico e tecnológico,
nascem outras formas de atentados à dignidade do ser humano, enquanto se
delineia e consolida uma nova situação cultural que dá aos crimes contra a
vida um aspecto inédito e — se é possível — ainda mais iníquo,
suscitando novas e graves preocupações: amplos setores da opinião pública
justificam alguns crimes contra a vida em nome dos direitos da liberdade
individual e, sobre tal pressuposto, pretendem não só a sua impunidade mas
ainda a própria autorização da parte do Estado para os praticar com absoluta
liberdade e, mais, com a colaboração gratuita dos Serviços de Saúde. Ora,
tudo isto provoca uma profunda alteração na maneira de considerar a vida e as
relações entre os homens. O fato de as legislações de muitos países,
afastando-se quiçá dos próprios princípios basilares das suas Constituições,
terem consentido em não punir ou mesmo até reconhecer a plena legitimidade de
tais ações contra a vida, é conjuntamente sintoma preocupante e causa não
marginal de uma grave derrocada moral: opções, outrora consideradas
unanimemente criminosas e rejeitadas pelo senso moral comum, tornam-se pouco a
pouco socialmente respeitáveis. A própria medicina que, por vocação, se
orienta para a defesa e cuidado da vida humana, em alguns dos seus setores
vai-se prestando em escala cada vez maior a realizar tais atos contra a pessoa,
e, deste modo, deforma o seu rosto, contradiz-se a si mesma e humilha a
dignidade de quantos a exercem. Em semelhante contexto cultural e legal, os
graves problemas demográficos, sociais ou familiares — que incidem sobre
numerosos povos do mundo e exigem a atenção responsável e operante das
comunidades nacionais e internacionais —, encontram-se também sujeitos a soluções
falsas e ilusórias, em contraste com a verdade e o bem das pessoas e das nações.
O resultado de tudo isto é dramático: se é muitíssimo grave e preocupante o
fenômeno da eliminação de tantas vidas humanas nascentes ou encaminhadas para
o seu ocaso, não o é menos o fato de à própria consciência, ofuscada por tão
vastos condicionalismos, lhe custar cada vez mais a perceber a distinção entre
o bem e o mal, precisamente naquilo que toca o fundamental valor da vida humana.
Em comunhão com todos os Bispos do mundo
5. Ao problema das ameaças à vida humana no nosso tempo, foi dedicado o
Consistório Extraordinário dos Cardeais, realizado em Roma de 4 a 7 de Abril
de 1991. Depois de amplo e profundo debate do problema e dos desafios postos à
família humana inteira e, de modo particular, à Comunidade cristã, os
Cardeais, com voto unânime, pediram-me que reafirmasse, com a autoridade do
Sucessor de Pedro, o valor da vida humana e a sua inviolabilidade, à luz das
circunstâncias atuais e dos atentados que hoje a ameaçam. Acolhendo tal
pedido, no Pentecostes de 1991 escrevi uma carta pessoal a cada Irmão no
Episcopado para que, em espírito de colegialidade, me oferecesse a sua colaboração
com vista à elaboração de um específico documento.6 Agradeço profundamente
a todos os Bispos que responderam, fornecendo-me preciosas informações, sugestões
e propostas. Deram também assim testemunho da sua participação concorde e
convicta na missão doutrinal e pastoral da Igreja acerca do Evangelho da vida.
Nessa mesma carta, que fora enviada poucos dias depois da celebração do centenário
da Encíclica Rerum Novarum, chamava a atenção de todos para esta singular
analogia: « Como há um século, oprimida nos seus direitos fundamentais era a
classe operária, e a Igreja com grande coragem tomou a sua defesa, proclamando
os sacrossantos direitos da pessoa do trabalhador, assim agora, quando outra
categoria de pessoas é oprimida no direito fundamental à vida, a Igreja sente
que deve, com igual coragem, dar voz a quem a não tem. O seu é sempre o grito
evangélico em defesa dos pobres do mundo, de quantos estão ameaçados,
desprezados e oprimidos nos seus direitos humanos ».7 Espezinhada no direito
fundamental à vida, é hoje uma grande multidão de seres humanos débeis e
indefesos, como o são, em particular, as crianças ainda não nascidas. Se, ao
findar do século passado, não fora consentido à Igreja calar perante as
injustiças então reinantes, menos ainda pode ela calar hoje, quando às
injustiças sociais do passado — infelizmente ainda não superadas — se vêm
somar, em tantas partes do mundo, injustiças e opressões ainda mais graves,
mesmo se disfarçadas em elementos de progresso com vista à organização de
uma nova ordem mundial. A presente Encíclica, fruto da colaboração do
Episcopado de cada país do mundo, quer ser uma reafirmação precisa e firme do
valor da vida humana e da sua inviolabilidade, e, conjuntamente, um ardente
apelo dirigido em nome de Deus a todos e cada um:respeita, defende, ama e serve
a vida, cada vida humana! Unicamente por esta estrada, encontrarás justiça,
progresso, verdadeira liberdade, paz e felicidade! Cheguem estas palavras a
todos os filhos e filhas da Igreja! Cheguem a todas as pessoas de boa vontade,
solícitas pelo bem de cada homem e mulher e pelo destino da sociedade inteira!
6. Em profunda comunhão com cada irmão e irmã na fé e animado por sincera
amizade para com todos, quero meditar de novo e anunciar o Evangelho da vida,
clara luz que ilumina as consciências, esplendor de verdade que cura o olhar
ofuscado, fonte inexaurível de constância e coragem para enfrentar os desafios
sempre novos que encontramos no nosso caminho. Tendo no pensamento a rica experiência
vivida durante o Ano da Família, e quase completando idealmente a Carta que
dirigi « a cada família concreta de cada região da terra »,8 olho com
renovada confiança para todas as comunidades domésticas e faço votos por que
renasça ou se reforce, em todos e aos diversos níveis, o compromisso de
apoiarem a família, para que também hoje — mesmo no meio de numerosas
dificuldades e graves ameaças — ela se conserve sempre, segundo o desígnio
de Deus, como « santuário da vida ».9 A todos os membros da Igreja, povo da
vida e pela vida, dirijo o mais premente convite para que, juntos, possamos dar
novos sinais de esperança a este nosso mundo, esforçando-nos por que cresçam
a justiça e a solidariedade e se afirme uma nova cultura da vida humana, para a
edificação de uma autêntica civilização da verdade e do amor.
CAPÍTULO I
A VOZ DO SANGUE DO TEU IRMÃO CLAMA DA TERRA
ATÉ MIM AS ATUAIS AMEAÇAS À VIDA
HUMANA
« Caim levantou a mão contra o irmão Abel matou-o » (Gn 4, 8): na raiz da
violência contra a vida
7. « Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não Lhe dá nenhuma
alegria. Porquanto Ele criou tudo para a existência. (...) Com efeito, Deus
criou o homem para a incorruptibilidade, e fê-lo à imagem da sua própria
natureza. Por inveja do demônio é que a morte entrou no mundo e prová-la-ão
os que pertencem ao demônio » (Sb 1, 13-14; 2, 23-24). O Evangelho da vida,
que ressoa, logo ao princípio, com a criação do homem à imagem de Deus para
um destino de vida plena e perfeita (cf. Gn 2, 7;
Sb 9, 2-3), vê-se contestado
pela experiência dilacerante da morte que entra no mundo, lançando o espectro
da falta de sentido sobre toda a existência do homem.
A morte entra por causa
da inveja do diabo (cf. Gn 3, 1.4-5) e do pecado dos primeiros pais (cf. Gn 2,
17; 3, 17-19). E entra de modo violento, através do assassínio de Abel por
obra do seu irmão: « Logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão contra o
irmão Abel e matou-o » (Gn 4, 8). Este primeiro assassínio é apresentado,
com singular eloqüência, numa página paradigmática do Livro do Gênesis: página
transcrita cada dia, sem cessar e com degradante repetição, no livro da história
dos povos. Queremos ler de novo, juntos, esta página bíblica, que, apesar do
seu aspecto arcaico e extrema simplicidade, se apresenta riquíssima de
ensinamentos. « Abel foi pastor; e Caim, lavrador. Ao fim de algum tempo, Caim
apresentou ao Senhor uma oferta de frutos da terra. Por seu lado, Abel ofereceu
primogênitos do seu rebanho e as gorduras deles.
O Senhor olhou favoravelmente
para Abel e para a sua oferta, mas não olhou para Caim nem para a sua oferta.
Caim ficou muito irritado e o rosto transtornou-se-lhe. O Senhor disse a Caim:
-Porque estás zangado e o teu rosto abatido? Se procederes bem, certamente
voltarás a erguer o rosto; se procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua
porta e andará a espreitar-te. Cuidado, pois ele tem muita inclinação para
ti, mas deves dominá-lo-. Entretanto, Caim disse a Abel, seu irmão: -Vamos ao
campo-. Porém, logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão contra o irmão
Abel e matou-o. O Senhor disse a Caim: -Onde está Abel, teu irmão?- Caim
respondeu: -Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?- O Senhor
replicou: -Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim.
De futuro, serás maldito sobre a terra que abriu a sua boca para beber da tua mão
o sangue do teu irmão. Quando a cultivares, negar-te-á as suas riquezas. Serás
vagabundo e fugitivo sobre a terra-. Caim disse ao Senhor: -A minha culpa é
grande demais para obter perdão! Expulsas-me hoje desta terra; obrigado a
ocultar-me longe da tua face, terei de andar fugitivo e vagabundo pela terra, e
o primeiro a encontrar-me matar-me-á-. O Senhor respondeu: -Não, se alguém
matar Caim, será castigado sete vezes mais-. E o Senhor marcou-o com um sinal,
a fim de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar.
Caim afastou-se da
presença do Senhor e foi residir na região de Nod, ao oriente do Éden » (Gn
4, 2-16).
8. Caim está « muito irritado » e tem o rosto « transtornado », porque « o
Senhor olhou favoravelmente para Abel e para a sua oferta » (Gn 4, 4). O texto
bíblico não revela o motivo pelo qual Deus preferiu o sacrifício de Abel ao
de Caim; mas indica claramente que, mesmo preferindo a oferta de Abel, não
interrompe o seu diálogo com Caim.
Acautela-o, recordando-lhe a sua liberdade
frente ao mal: o homem não está de forma alguma predestinado para o mal.
Certamente, à semelhança de Adão, ele é tentado pela força maléfica do
pecado que, como um animal feroz, se agacha à porta do seu coração, à espera
de lançar-se sobre a presa. Mas Caim permanece livre diante do pecado. Pode e
deve dominá-lo: « Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves
dominá-lo » (Gn 4, 7). Sobre a advertência feita pelo Senhor, porém, levam a
melhor o ciúme e a ira, e Caim atira-se contra o próprio irmão e mata-o. Como
lemos no Catecismo da Igreja Católica, « a Sagrada Escritura, na narrativa da
morte de Abel por seu irmão Caim, revela, desde os primórdios da história
humana, a presença no homem da cólera e da inveja, conseqüências do pecado
original. O homem tornou-se inimigo do seu semelhante ».10 O irmão mata o irmão.
Como naquele primeiro fratricídio, também em cada homicídio é violado o
parentesco « espiritual » que congrega os homens numa única grande família,11
sendo todos participantes do mesmo bem fundamental: a igual dignidade pessoal.
E, não raro, resulta violado também o parentesco « da carne e do sangue »,
quando, por exemplo, as ameaças à vida se verificam ao nível do
relacionamento pais e filhos, como sucede com o aborto ou quando, no mais vasto
contexto familiar ou de parentela, é encorajada ou provocada a eutanásia.
Na
raiz de qualquer violência contra o próximo, há uma cedência à « lógica
» do maligno, isto é, daquele que « foi assassino desde o princípio » (Jo
8,44), como nos recorda o apóstolo João: « Porque esta é a mensagem que
ouvistes desde o princípio: que nos amemos uns aos outros. Não seja como Caim
que era do maligno, e matou o seu irmão » (1 Jo 3, 11-12). Assim o assassinato
do irmão, desde os alvores da história, é o triste testemunho de como o mal
progride com rapidez impressionante: à revolta do homem contra Deus no paraíso
terreal segue-se a luta mortal do homem contra o homem. Depois do crime, Deus
intervém para vingar a vítima. Frente a Deus que o interroga sobre a sorte de
Abel, Caim, em vez de se mostrar confundido e desculpar-se, esquiva-se à
pergunta com arrogância: « Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?
» (Gn 4, 9). «Não sei dele »: com a mentira, Caim procura encobrir o crime.
Assim aconteceu freqüentemente e continua a verificar-se quando se servem das
mais diversas ideologias para justificar e mascarar os crimes mais atrozes
contra a pessoa. « Sou, porventura, guarda do meu irmão? »: Caim não quer
pensar no irmão, e recusa-se a assumir aquela responsabilidade que cada homem
tem pelo outro. Saltam espontaneamente ao pensamento as tendências atuais para
sonegar a responsabilidade do homem pelo seu semelhante, de que são sintomas,
entre outros, a falta de solidariedade com os membros mais débeis da sociedade
— como são os idosos, os doentes, os imigrantes, as crianças —, e a
indiferença que tantas vezes se registra nas relações entre os povos, mesmo
quando estão em jogo valores fundamentais como a sobrevivência, a liberdade e
a paz.
9. Mas Deus não pode deixar impune o crime: da terra onde foi derramado, o
sangue da vítima exige que Ele faça justiça (cf. Gn 37, 26; Is 26, 21; Ez 24,
7-8). Deste texto, a Igreja retirou a denominação de « pecados que bradam ao
Céu », incluindo em primeiro lugar o homicídio voluntário.12 Para os
hebreus, como para muitos povos da antiguidade, o sangue é a sede da vida, ou
melhor « o sangue é a vida » (Dt 12, 23), e a vida, sobretudo a humana,
pertence unicamente a Deus: por isso, quem atenta contra a vida do homem, de
algum modo atenta contra o próprio Deus. Caim é amaldiçoado por Deus como
também pela terra, que lhe recusará os seus frutos (cf. Gn 4,11-12). E é
punido: habitará em terras agrestes e desertas. A violência homicida altera
profundamente o ambiente da vida do homem. A terra, que era o « jardim do Éden
» (Gn 2, 15), lugar de abundância, de serenas relações interpessoais e de
amizade com Deus, torna-se o « país de Nod » (Gn 4, 16), lugar de « miséria
», de solidão e de afastamento de Deus. Caim será « fugitivo e vagabundo
pela terra » (Gn 4, 14): dúvida e instabilidade sempre o acompanharão.
Contudo Deus, misericordioso mesmo quando castiga, « marcou 1 com um sinal, a
fim de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar » (Gn 4, 15): põe-lhe um
sinal, cujo objetivo não é condená-lo à abominação dos outros homens, mas
protegê-lo e defendê-lo daqueles que o quiserem matar, ainda que seja para
vingar a morte de Abel.
Nem sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e o
próprio Deus Se constitui seu garante. E é precisamente aqui que se manifesta
o mistério paradoxal da justiça misericordiosa de Deus, como escreve Santo
Ambrósio: « Visto que tinha sido cometido um fratricídio — ou seja, o maior
dos crimes —, no momento em que se introduziu o pecado, teve imediatamente de
ser ampliada a lei da misericórdia divina; para que, caso o castigo atingisse
imediatamente o culpado, não sucedesse que os homens, ao punirem, não usassem
de qualquer tolerância nem mansidão, mas entregassem imediatamente ao castigo
os culpados. (...) Deus repeliu Caim da sua presença e, renegado pelos seus
pais, como que o desterrou para o exílio de uma habitação separada, pelo fato
de ter passado da mansidão humana à crueldade selvagem. Todavia Deus não quer
punir o homicida com um homicídio, porque prefere o arrependimento do pecador
à sua morte ».13
« Que fizeste? » (Gn 4, 10): o eclipse do valor da vida
10. O Senhor disse a Caim: « Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama
da terra até Mim » (Gn 4, 10). A voz do sangue derramado pelos homens não
cessa de clamar, de geração em geração, assumindo tons e acentos sempre
novos e diversos. A pergunta do Senhor « que fizeste? », à qual Caim não se
pode esquivar, é dirigida também ao homem contemporâneo, para que tome consciência
da amplitude e gravidade dos atentados à vida que continuam a registar-se na
história da humanidade, para que vá à procura das múltiplas causas que os
geram e alimentam, e, enfim, para que reflita com extrema seriedade sobre as
conseqüências que derivam desses mesmos atentados para a existência das
pessoas e dos povos.
Algumas ameaças provêm da própria natureza, mas são
agravadas pelo descuido culpável e pela negligência dos homens que, não raro,
lhes poderiam dar remédio; outras, ao contrário, são fruto de situações de
violência, de ódio, de interesses contrapostos, que induzem homens a agredirem
outros homens com homicídios, guerras, massacres, genocídios. Como não pensar
na violência causada à vida de milhões de seres humanos, especialmente crianças,
constrangidos à miséria, à subnutrição e à fome, por causa da iníqua
distribuição das riquezas entre os povos e entre as classes sociais? Ou na
violência inerente às guerras, e ainda antes delas, ao escandaloso comércio
de armas, que favorece o torvelinho de tantos conflitos armados que ensangüentam
o mundo? Ou então na sementeira de morte que se provoca com a imprudente alteração
dos equilíbrios ecológicos, com a criminosa difusão da droga, ou com a promoção
do uso da sexualidade segundo modelos que, além de serem moralmente inaceitáveis,
acarretam ainda graves riscos para a vida? É impossível registar de modo
completo a vasta gama das ameaças à vida humana, tantas são as formas,
abertas ou camufladas, de que se revestem no nosso tempo!
11. Mas queremos concentrar a nossa atenção, de modo particular, sobre outro gênero
de atentados, relativos à vida nascente e terminal, que apresentam novas
características em relação ao passado e levantam problemas de singular
gravidade: é que, na consciência coletiva, aqueles tendem a perder o caráter
de « crimes » para assumir, paradoxalmente, o caráter de « direitos », a
ponto de se pretender um verdadeiro e próprio reconhecimento legal da parte do
Estado e a conseqüente execução gratuita por intermédio dos profissionais da
saúde. Tais atentados ferem a vida humana em situações de máxima
fragilidade, quando se acha privada de qualquer capacidade de defesa. Mais grave
ainda é o fato de serem consumados, em grande parte, mesmo no seio e por obra
da família que está, pelo contrário, chamada constitutivamente a ser « santuário
da vida ». Como se pôde criar semelhante situação? Há que tomar em
consideração diversos fatores.
Como pano de fundo, existe uma crise profunda
da cultura, que gera cepticismo sobre os próprios fundamentos do conhecimento e
da ética e torna cada vez mais difícil compreender claramente o sentido do
homem, dos seus direitos e dos seus deveres. A isto, vêm juntar-se as mais
diversas dificuldades existenciais e interpessoais, agravadas pela realidade de
uma sociedade complexa, onde freqüentemente as pessoas, os casais, as famílias
são deixadas sozinhas a braços com os seus problemas.
Não faltam situações
de particular pobreza, angústia e exasperação, onde a luta pela sobrevivência,
a dor nos limites do suportável, as violências sofridas, especialmente aquelas
que investem as mulheres, tornam por vezes exigentes até ao heroísmo as opções
de defesa e promoção da vida. Tudo isto explica — pelo menos em parte —
como possa o valor da vida sofrer hoje uma espécie de « eclipse », apesar da
consciência não cessar de o apontar como valor sagrado e intocável; e
comprova-o o próprio fenômeno de se procurar encobrir alguns crimes contra a
vida nascente ou terminal com expressões de âmbito terapêutico, que desviam o
olhar do fato de estar em jogo o direito à existência de uma pessoa humana
concreta.
12. Com efeito, se muitos e graves aspetos da problemática social atual podem,
de certo modo, explicar o clima de difusa incerteza moral e, por vezes, atenuar
a responsabilidade subjetiva no indivíduo, não é menos verdade que estamos
perante uma realidade mais vasta que se pode considerar como verdadeira e própria
estrutura de pecado, caracterizada pela imposição de uma cultura anti-solidária,
que em muitos casos se configura como verdadeira « cultura de morte ». É
ativamente promovida por fortes correntes culturais, econômicas e políticas,
portadoras de uma concepção eficientista da sociedade. Olhando as coisas deste
ponto de vista, pode-se, em certo sentido, falar de uma guerra dos poderosos
contra os débeis: a vida que requereria mais acolhimento, amor e cuidado, é
reputada inútil ou considerada como um peso insuportável, e, conseqüentemente,
rejeitada sob múltiplas formas.
Todo aquele que, pela sua enfermidade, a sua
deficiência ou, mais simplesmente ainda, a sua própria presença, põe em
causa o bem-estar ou os hábitos de vida daqueles que vivem mais avantajados,
tende a ser visto como um inimigo do qual defender-se ou um inimigo a eliminar.
Desencadeia-se assim uma espécie de « conjura contra a vida ». Esta não se
limita apenas a tocar os indivíduos nas suas relações pessoais, familiares ou
de grupo, mas alarga-se muito para além até atingir e subverter, a nível
mundial, as relações entre os povos e os Estados.
13. Para facilitar a difusão do aborto, foram investidas — e continuam a sê-lo
— somas enormes, destinadas à criação de fármacos que tornem possível a
morte do feto no ventre materno, sem necessidade de recorrer à ajuda do médico.
A própria investigação científica, neste âmbito, parece quase
exclusivamente preocupada em obter produtos cada vez mais simples e eficazes
contra a vida e, ao mesmo tempo, capazes de subtrair o aborto a qualquer forma
de controlo e responsabilidade social. Afirma-se freqüentemente que a contracepção,
tornada segura e acessível a todos, é o remédio mais eficaz contra o aborto.
E depois acusa-se a Igreja Católica de, na realidade, favorecer o aborto,
porque continua obstinadamente a ensinar a ilicitude moral da contracepção.
Bem vista, porém, a objeção é falaciosa. De fato, pode acontecer que muitos
recorram aos contraceptivos com a intenção também de evitar depois a tentação
do aborto.
Mas os pseudo-valores inerentes à « mentalidade contraceptiva »
— muito diversa do exercício responsável da paternidade e maternidade,
atuada no respeito pela verdade plena do ato conjugal — são tais que tornam
ainda mais forte essa tentação, na eventualidade de ser concebida uma vida não
desejada. De fato, a cultura pro-aborto aparece sobretudo desenvolvida nos
mesmos ambientes que recusam o ensinamento da Igreja sobre a contracepção.
Certo é que a contracepção e o aborto são males especificamente diversos do
ponto de vista moral: uma contradiz a verdade integral do ato sexual enquanto
expressão própria do amor conjugal, o outro destrói a vida de um ser humano;
a primeira opõe-se à virtude da castidade matrimonial, o segundo opõe-se à
virtude da justiça e viola diretamente o preceito divino « não matarás ».
Mas, apesar de terem natureza e peso moral diversos, eles surgem, com muita freqüência,
intimamente relacionados como frutos da mesma planta.
É verdade que não faltam
casos onde, à contracepção e ao próprio aborto se vem juntar a pressão de
diversas dificuldades existenciais que, no entanto, não podem nunca exonerar do
esforço de observar plenamente a lei de Deus. Mas, em muitíssimos outros
casos, tais práticas afundam as suas raízes numa mentalidade hedonista e
desresponsabilizadora da sexualidade, e supõem um conceito egoísta da
liberdade que vê na procriação um obstáculo ao desenvolvimento da própria
personalidade. A vida que poderia nascer do encontro sexual torna-se assim o
inimigo que se há-de evitar absolutamente, e o aborto a única solução possível
diante de uma contracepção falhada. Infelizmente, emerge cada vez mais a
estreita conexão que existe, a nível de mentalidade, entre as práticas da
contracepção e do aborto, como o demonstra, de modo alarmante, a produção de
fármacos, dispositivos intra-uterinos e preservativos, os quais, distribuídos
com a mesma facilidade dos contraceptivos, atuam na prática como abortivos nos
primeiros dias de desenvolvimento da vida do novo ser humano.
14. Também as várias técnicas de reprodução artificial, que pareceriam
estar ao serviço da vida e que, não raro, são praticadas com essa intenção,
na realidade abrem a porta a novos atentados contra a vida. Para além do fato
de serem moralmente inaceitáveis, porquanto separam a procriação do contexto
integralmente humano do ato conjugal,14 essas técnicas registam altas
percentagens de insucesso: este diz respeito não tanto à fecundação como
sobretudo ao desenvolvimento sucessivo do embrião, sujeito ao risco de morte em
tempos geralmente muito breves.
Além disso, são produzidos às vezes embriões
em número superior ao necessário para a implantação no útero da mulher e
esses, chamados « embriões supranumerários », são depois suprimidos ou
utilizados para pesquisas que, a pretexto de progresso científico ou médico,
na realidade reduzem a vida humana a simples « material biológico », de que
se pode livremente dispor. Os diagnósticos pré-natais, que não apresentam
dificuldades morais quando feitos para individuar a eventualidade de curas
necessárias à criança ainda no seio materno, tornam-se, com muita freqüência,
ocasião para propor e solicitar o aborto. É o aborto eugênico, cuja legitimação,
na opinião pública, nasce de uma mentalidade — julgada, erradamente,
coerente com as exigências « terapêuticas » — que acolhe a vida apenas sob
certas condições, e que recusa a limitação, a deficiência, a enfermidade.
Seguindo a mesma lógica, chegou-se a negar os cuidados ordinários mais
elementares, mesmo até a alimentação, a crianças nascidas com graves deficiências
ou enfermidades. E o cenário contemporâneo apresenta-se ainda mais
desconcertante com as propostas — avançadas aqui e além — para, na mesma
linha do direito ao aborto, se legitimar até o infanticídio, retornando assim
a um estado de barbárie que se esperava superado para sempre.
15. Ameaças não menos graves pesam também sobre os doentes incuráveis e os
doentes terminais, num contexto social e cultural que, tornando mais difícil
enfrentar e suportar o sofrimento, aviva a tentação de resolver o problema do
sofrimento eliminando-o pela raiz, com a antecipação da morte para o momento
considerado mais oportuno. Para tal decisão concorrem, muitas vezes, elementos
de natureza diversa mas infelizmente convergentes para essa terrível saída.
Pode ser decisivo, na pessoa doente, o sentimento de angústia, exasperação,
ou até desespero, provocado por uma experiência de dor intensa e prolongada. Vêem-se,
assim, duramente postos à prova os equilíbrios, por vezes já abalados, da
vida pessoal e familiar, de maneira que, por um lado, o doente, não obstante os
auxílios cada vez mais eficazes da assistência médica e social, corre o risco
de se sentir esmagado pela própria fragilidade; por outro lado, naqueles que
lhe estão afetivamente ligados, pode gerar-se um sentimento de compreensível,
ainda que mal-entendida, compaixão.
Tudo isto fica agravado por uma atmosfera
cultural que não vê qualquer significado nem valor no sofrimento, antes
considera-o como o mal por excelência, que se há-de eliminar a todo o custo;
isto verifica- -se especialmente quando não se possui uma visão religiosa que
ajude a decifrar positivamente o mistério da dor. Mas, no conjunto do horizonte
cultural, não deixa de incidir também uma espécie de atitude prometéica do
homem que, desse modo, se ilude de poder apropriar-se da vida e da morte para
decidir delas, quando na realidade acaba derrotado e esmagado por uma morte
irremediavelmente fechada a qualquer perspectiva de sentido e a qualquer esperança.
Uma trágica expressão de tudo isto, encontramo-la na difusão da eutanásia,
ora mascarada e sub-reptícia, ora atuada abertamente e até legalizada. Para além
do motivo de presunta compaixão diante da dor do paciente, às vezes
pretende-se justificar a eutanásia também com uma razão utilitarista, isto é,
para evitar despesas improdutivas demasiado gravosas para a sociedade. Propõe-se,
assim, a supressão dos recém-nascidos defeituosos, dos deficientes profundos,
dos inválidos, dos idosos, sobretudo quando não auto-suficientes, e dos
doentes terminais. Nem nos é lícito calar frente a outras formas mais
astuciosas, mas não menos graves e reais, de eutanásia, como são as que se
poderiam verificar, por exemplo, quando, para aumentar a disponibilidade de
material para transplantes, se procedesse à extração dos órgãos sem
respeitar os critérios objetivos e adequados de certificação da morte do
doador. 16. Outro motivo atual, que freqüentemente é acompanhado por ameaças
e atentados à vida, é o fenômeno demográfico.
Este reveste aspectos
diversos, nas várias partes do mundo: nos países ricos e desenvolvidos,
registra uma preocupante diminuição ou queda da natalidade; os países pobres,
ao contrário, apresentam em geral uma elevada taxa de aumento da população,
dificilmente suportável num contexto de menor progresso econômico e social, ou
até de grave subdesenvolvimento. Face ao sobrepovoamento dos países pobres,
verifica-se, a nível internacional, a falta de intervenções globais — sérias
políticas familiares e sociais, programas de crescimento cultural e de justa
produção e distribuição dos recursos — enquanto se continuam a atuar políticas
anti-natalistas. Devendo, sem dúvida, incluir-se a contracepção, a esterilização
e o aborto entre as causas que contribuem para determinar as situações de
forte queda da natalidade, pode ser fácil a tentação de recorrer aos mesmos métodos
e atentados contra a vida, nas situações de « explosão demográfica ».
O
antigo Faraó, sentindo como um íncubo a presença e a multiplicação dos
filhos de Israel, sujeitou-os a todo o tipo de opressão e ordenou que fossem
mortas todas as crianças do sexo masculino (cf. Ex 1, 7-22). Do mesmo modo se
comportam hoje bastantes poderosos da terra. Também estes vêem como um íncubo
o crescimento demográfico em ato, e temem que os povos mais prolíferos e mais
pobres representem uma ameaça para o bem-estar e a tranqüilidade dos seus países.
conseqüentemente, em vez de procurarem enfrentar e resolver estes graves
problemas dentro do respeito da dignidade das pessoas e das famílias e do
inviolável direito de cada homem à vida, preferem promover e impor, por
qualquer meio, um maciço planejamento da natalidade. As próprias ajudas econômicas,
que se dizem dispostos a dar, ficam injustamente condicionadas à aceitação
desta política anti-natalista.
17. A humanidade de hoje oferece-nos um espetáculo verdadeiramente alarmante,
se pensarmos não só aos diversos âmbitos em que se realizam os atentados à
vida, mas também à singular dimensão numérica dos mesmos, bem como ao múltiplo
e poderoso apoio que lhes é dado pelo amplo consenso social, pelo freqüente
reconhecimento legal, pelo envolvimento de uma parte dos profissionais da saúde.
Como senti dever bradar em Denver, por ocasião do VIII Dia Mundial da
Juventude, « com o tempo, as ameaças contra a vida não diminuíram. Elas, ao
contrário, assumem dimensões enormes.
Não se trata apenas de ameaças vindas
do exterior, de forças da natureza ou dos « Cains » que assassinam os « Abéis
»; não, trata-se de ameaças programadas de maneira científica e sistemática.
O século XX ficará considerado uma época de ataques maciços contra a vida,
uma série infindável de guerras e um massacre permanente de vidas humanas
inocentes. Os falsos profetas e os falsos mestres conheceram o maior sucesso
possível ».15 Para além das intenções, que podem ser várias e quiçá
assumir formas persuasivas em nome até da solidariedade, a verdade é que
estamos perante uma objetiva « conjura contra a vida » que vê também
implicadas Instituições Internacionais, empenhadas a encorajar e programar
verdadeiras e próprias campanhas para difundir a contracepção, a esterilização
e o aborto.
Não se pode negar, enfim, que os mass-media são freqüentemente cúmplices
dessa conjura, ao abonarem junto da opinião pública aquela cultura que
apresenta o recurso à contracepção, à esterilização, ao aborto e à própria
eutanásia como sinal do progresso e conquista da liberdade, enquanto descrevem
como inimigas da liberdade e do progresso as posições incondicionalmente a
favor da vida. « Sou, porventura, guarda do meu irmão? » (Gn 4, 9): uma noção
perversa de liberdade
18. O panorama descrito requer ser conhecido não somente nos fenômenos de
morte que o caracterizam, mas também nas múltiplas causas que o determinam. A
pergunta do Senhor « que fizeste? » (Gn 4, 10) quase parece um convite
dirigido a Caim para que, ultrapassando a materialidade do gesto homicida, veja
toda a gravidade nas motivações que estão na sua origem e nas conseqüências
que dele derivam.
As opções contra a vida nascem, às vezes, de situações
difíceis ou mesmo dramáticas de profundo sofrimento, de solidão, de carência
total de perspectivas econômicas, de depressão e de angústia pelo futuro.
Estas circunstâncias podem atenuar, mesmo até notavelmente, a responsabilidade
subjetiva e, conseqüentemente, a culpabilidade daqueles que realizam tais opções
em si mesmas criminosas.
Hoje, todavia, o problema estende-se muito para além
do reconhecimento, sempre necessário, destas situações pessoais. Põe-se também
no plano cultural, social e político, onde apresenta o seu aspecto mais
subversivo e perturbador na tendência, cada vez mais largamente compartilhada,
de interpretar os mencionados crimes contra a vida como legítimas expressões
da liberdade individual, que hão-de ser reconhecidas e protegidas como
verdadeiros e próprios direitos. Chega assim a uma viagem de trágicas conseqüências,
um longo processo histórico, o qual, depois de ter descoberto o conceito de «
direitos humanos » — como direitos inerentes a cada pessoa e anteriores a
qualquer Constituição e legislação dos Estados —, incorre hoje numa
estranha contradição: precisamente numa época em que se proclamam solenemente
os direitos invioláveis da pessoa e se afirma publicamente o valor da vida, o
próprio direito à vida é praticamente negado e espezinhado, particularmente
nos momentos mais emblemáticos da existência, como são o nascer e o morrer.
Por um lado, as várias declarações dos direitos do homem e as múltiplas
iniciativas que nelas se inspiram, indicam a consolidação a nível mundial de
uma sensibilidade moral mais diligente em reconhecer o valor e a dignidade de
cada ser humano enquanto tal, sem qualquer distinção de raça, nacionalidade,
religião, opinião política, estrato social. Por outro lado, a estas nobres
proclamações contrapõem-se, infelizmente nos fatos, a sua trágica negação.
Esta é ainda mais desconcertante, antes mais escandalosa, precisamente porque
se realiza numa sociedade que faz da afirmação e tutela dos direitos humanos o
seu objetivo principal e, conjuntamente, o seu título de glória. Como pôr de
acordo essas repetidas afirmações de princípio com a contínua multiplicação
e a difusa legitimação dos atentados à vida humana? Como conciliar estas
declarações com a recusa do mais débil, do mais carenciado, do idoso, daquele
que acaba de ser concebido? Estes atentados encaminham-se exatamente na direção
contrária à do respeito pela vida e representam uma ameaça frontal a toda a
cultura dos direitos do homem.
É uma ameaça capaz, em última análise, de pôr
em risco o próprio significado da convivência democrática: de sociedade de «
con-viventes », as nossas cidades correm o risco de passar a sociedade de excluídos,
marginalizados, irradiados e suprimidos. Se depois o olhar se alarga ao
horizonte mundial, como não pensar que a afirmação dos direitos das pessoas e
dos povos, verificada em altas reuniões internacionais, se reduz a um estéril
exercício retórico, se lá não é desmascarado o egoísmo dos países ricos
que fecham aos países pobres o acesso ao desenvolvimento ou o condicionam a
proibições absurdas de procriação, contrapondo o progresso ao homem?
Porventura não é de pôr em discussão os próprios modelos econômicos,
adotados pelos Estados freqüentemente também por pressões e condicionamentos
de caráter internacional, que geram e alimentam situações de injustiça e
violência, nas quais a vida humana de populações inteiras fica degradada e
espezinhada?
19. Onde estão as raízes de uma contradição tão
paradoxal?
Podemo-las individuar em avaliações globais de ordem cultural e moral, a começar
daquela mentalidade que, exasperando e até deformando o conceito de
subjetividade, só reconhece como titular de direitos quem se apresente com
plena ou, pelo menos, incipiente autonomia e esteja fora da condição de total
dependência dos outros.
Mas, como conciliar tal impostação com a exaltação
do homem enquanto ser « não-disponível »? A teoria dos direitos humanos
funda-se precisamente na consideração do fato de o homem, ao contrário dos
animais e das coisas, não poder estar sujeito ao domínio de ninguém. Deve-se
acenar ainda àquela lógica que tende a identificar a dignidade pessoal com a
capacidade de comunicação verbal e explícita e, em todo o caso, experimentável.
Claro que, com tais pressupostos, não há espaço no mundo para quem, como o
nascituro ou o doente terminal, é um sujeito estruturalmente débil, parece
totalmente à mercê de outras pessoas e radicalmente dependente delas, e sabe
comunicar apenas mediante a linguagem muda de uma profunda simbiose de afetos.
Assim a força torna-se o critério de decisão e de ação, nas relações
interpessoais e na convivência social.
Mas isto é precisamente o contrário
daquilo que, historicamente, quis afirmar o Estado de direito, como comunidade
onde as « razões da força » são substituídas pela « força da razão ».
A outro nível, as raízes da contradição que se verifica entre a solene
afirmação dos direitos do homem e a sua trágica negação na prática,
residem numa concepção da liberdade que exalta o indivíduo de modo absoluto e
não o predispõe para a solidariedade, o pleno acolhimento e serviço do outro.
Se é certo que, por vezes, a supressão da vida nascente ou terminal aparece
também matizada com um sentido equivocado de altruísmo e de compaixão humana,
não se pode negar que tal cultura de morte, no seu todo, manifesta uma concepção
da liberdade totalmente individualista que acaba por ser a liberdade dos « mais
fortes » contra os débeis, destinados a sucumbir.
Precisamente neste sentido,
se pode interpretar a resposta de Caim à pergunta do Senhor « onde está Abel,
teu irmão? »: « Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão? » (Gn
4, 9). Sim, todo o homem é « guarda do seu irmão », porque Deus confia o
homem ao homem. E é tendo em vista também tal entrega que Deus dá a cada
homem a liberdade, que possui uma dimensão relacional essencial. Trata-se de um
grande dom do Criador, quando colocada como deve ser ao serviço da pessoa e da
sua realização mediante o dom de si e o acolhimento do outro; quando, pelo
contrário, a liberdade é absolutizada em chave individualista, fica esvaziada
do seu conteúdo originário e contestada na sua própria vocação e dignidade.
Mas há um aspecto ainda mais profundo a sublinhar: a liberdade renega-se a si
mesma, autodestrói-se e predispõe-se à eliminação do outro, quando deixa de
reconhecer e respeitar a sua ligação constitutiva com a verdade. Todas as
vezes que a razão humana, querendo emancipar-se de toda e qualquer tradição e
autoridade, se fecha até às evidências primárias de uma verdade objetiva e
comum, fundamento da vida pessoal e social, a pessoa acaba por assumir como única
e indiscutível referência para as próprias decisões, não já a verdade
sobre o bem e o mal, mas apenas a sua subjetiva e volúvel opinião ou,
simplesmente, o seu interesse egoísta e o seu capricho.
20. Nesta concepção da liberdade, a convivência social fica profundamente
deformada. Se a promoção do próprio eu é vista em termos de autonomia
absoluta, inevitavelmente chega-se à negação do outro, visto como um inimigo
de quem defender-se. Deste modo, a sociedade torna-se um conjunto de indivíduos,
colocados uns ao lado dos outros mas sem laços recíprocos: cada um quer
afirmar-se independentemente do outro, mais, quer fazer prevalecer os seus
interesses.
Todavia, na presença de análogos interesses da parte do outro, terá
de se render a procurar qualquer forma de compromisso, se se quer que, na
sociedade, seja garantido a cada um o máximo de liberdade possível. Deste
modo, diminui toda a referência a valores comuns e a uma verdade absoluta para
todos: a vida social aventura-se pelas areias movediças de um relativismo
total. Então, tudo é convencional, tudo é negociável: inclusivamente o
primeiro dos direitos fundamentais, o da vida. É aquilo que realmente acontece,
mesmo no âmbito mais especificamente político e estatal: o primordial e
inalienável direito à vida é posto em discussão ou negado com base num voto
parlamentar ou na vontade de uma parte — mesmo que seja majoritária — da
população. É o resultado nefasto de um relativismo que reina incontestado: o
próprio « direito » deixa de o ser, porque já não está solidamente fundado
sobre a inviolável dignidade da pessoa, mas fica sujeito à vontade do mais
forte.
Deste modo e para descrédito das suas regras, a democracia caminha pela
estrada de um substancial totalitarismo. O Estado deixa de ser a « casa comum
», onde todos podem viver segundo princípios de substancial igualdade, e
transforma-se num Estado tirano, que presume de poder dispor da vida dos mais débeis
e indefesos, desde a criança ainda não nascida até ao idoso, em nome de uma
utilidade pública que, na realidade, não é senão o interesse de alguns. Tudo
parece acontecer no mais firme respeito da legalidade, pelo menos quando as
leis, que permitem o aborto e a eutanásia, são votadas segundo as chamadas
regras democráticas. Na verdade, porém, estamos perante uma mera e trágica
aparência de legalidade, e o ideal democrático, que é verdadeiramente tal
apenas quando reconhece e tutela a dignidade de toda a pessoa humana, é atraiçoado
nas suas próprias bases: « Como é possível falar ainda de dignidade de toda
a pessoa humana, quando se permite matar a mais débil e a mais inocente? Em
nome de qual justiça se realiza a mais injusta das discriminações entre as
pessoas, declarando algumas dignas de ser defendidas, enquanto a outras esta
dignidade é negada? ».16 Quando se verificam tais condições, estão já
desencadeados aqueles mecanismos que levam à dissolução da convivência
humana autêntica e à desagregação da própria realidade estatal. Reivindicar
o direito ao aborto, ao infanticídio, à eutanásia, e reconhecê-lo
legalmente, equivale a atribuir à liberdade humana um significado perverso e iníquo:
o significado de um poder absoluto sobre os outros e contra os outros.
Mas isto
é a morte da verdadeira liberdade: « Em verdade, em verdade vos digo: todo
aquele que comete o pecado é escravo do pecado » (Jo 8, 34).
« Obrigado a ocultar-me longe da tua face » (Gn 4, 14): o eclipse do sentido
de Deus e do homem
21. Quando se procuram as raízes mais profundas da luta entre a « cultura da
vida » e a « cultura da morte », não podemos deter-nos na noção perversa
de liberdade acima referida. É necessário chegar ao coração do drama vivido
pelo homem contemporâneo: o eclipse do sentido de Deus e do homem, típico de
um contexto social e cultural dominado pelo secularismo que, com os seus tentáculos
invasivos, não deixa às vezes de pôr à prova as próprias comunidades cristãs.
Quem se deixa contagiar por esta atmosfera, entra facilmente na voragem de um
terrível círculo vicioso: perdendo o sentido de Deus, tende-se a perder também
o sentido do homem, da sua dignidade e da sua vida; por sua vez, a sistemática
violação da lei moral, especialmente na grave matéria do respeito da vida
humana e da sua dignidade, produz uma espécie de ofuscamento progressivo da
capacidade de enxergar a presença vivificante e salvífica de Deus. Podemos,
mais uma vez, inspirar-nos na narração da morte de Abel provocada pelo seu irmão.
Depois da maldição infligida por Deus a Caim, este dirige-se ao Senhor
dizendo: « A minha culpa é grande demais para obter perdão.
Expulsas-me hoje
desta terra;obrigado a ocultar-me longe da tua face, terei de andar fugitivo e
vagabundo pela terra, e o primeiro a encontrar-me matar-me-á » (Gn 4, 13-14).
Caim pensa que o seu pecado não poderá obter perdão do Senhor e que o seu
destino inevitável será « ocultar-se longe » d-Ele. Se Caim chega a
confessar que a sua culpa é « grande demais », é por saber que se encontra
diante de Deus e do seu justo juízo. Na realidade, só diante do Senhor é que
o homem pode reconhecer o seu pecado e perceber toda a sua gravidade. Tal foi a
experiência de David, que, depois « de ter feito o que é mal aos olhos do
Senhor » e de ser repreendido pelo profeta Natã (cf. 2 Sm 11-12), exclama: «
Eu reconheço os meus pecados, e as minhas culpas tenho-as sempre diante de mim.
Pequei contra Vós, só contra Vós, e fiz o mal diante dos vossos olhos » (Sl 51/50, 5-6).
22. Por isso, quando declina o sentido de Deus, também o sentido do homem fica
ameaçado e adulterado, como afirma de maneira lapidar o Concílio Vaticano II:
« Sem o Criador, a criatura não subsiste. (...) Antes, se se esquece Deus, a
própria criatura se obscurece ».17 O homem deixa de conseguir sentir-se como
« misteriosamente outro » face às diversas criaturas terrenas; considera-se
apenas como um de tantos seres vivos, como um organismo que, no máximo, atingiu
um estado muito elevado de perfeição. Fechado no estreito horizonte da sua
dimensão física, reduz-se de certo modo a « uma coisa », deixando de captar
o caráter « transcendente » do seu « existir como homem ».
Deixa de
considerar a vida como um dom esplêndido de Deus, uma realidade « sagrada »
confiada à sua responsabilidade e, conseqüentemente, à sua amorosa defesa, à
sua « veneração ». A vida torna-se simplesmente « uma coisa », que ele
reivindica como sua exclusiva propriedade, que pode plenamente dominar e
manipular. Assim, diante da vida que nasce e da vida que morre, o homem já não
é capaz de se deixar interrogar sobre o sentido mais autêntico da sua existência,
assumindo com verdadeira liberdade estes momentos cruciais do próprio « ser ».
Preocupa-se somente com o « fazer », e, recorrendo a qualquer forma de
tecnologia, moureja a programar, controlar e dominar o nascimento e a morte.
Estes acontecimentos, em vez de experiências primordiais que requerem ser «
vividas », tornam-se coisas que se pretende simplesmente « possuir » ou «
rejeitar ».
Aliás, uma vez excluída a referência a Deus, não surpreende que
o sentido de todas as coisas resulte profundamente deformado, e a própria
natureza, já não vista como mater 1, fique reduzida a « material » sujeito a
todas as manipulações. A isto parece conduzir certa mentalidade técnico-científica,
predominante na cultura contemporânea, que nega a idéia mesma de uma verdade
própria da criação que se há-de reconhecer, ou de um desígnio de Deus sobre
a vida que temos de respeitar. E isto não é menos verdade, quando a angústia
pelos resultados de tal « liberdade sem lei » induz alguns à exigência
oposta de uma « lei sem liberdade », como sucede, por exemplo, em ideologias
que contestam a legitimidade de qualquer forma de intervenção sobre a
natureza, como que em nome de uma sua « divinização », o que uma vez mais
menospreza a sua dependência do desígnio do Criador. Na realidade, vivendo «
como se Deus não existisse », o homem perde o sentido não só do mistério de
Deus, mas também do mistério do mundo, e do mistério do seu próprio ser.
23. O eclipse do sentido de Deus e do homem conduz inevitavelmente ao
materialismo prático, no qual prolifera o individualismo, o utilitarismo e o
hedonismo. Também aqui se manifesta a validade perene daquilo que escreve o Apóstolo:
« Como não procuraram ter de Deus conhecimento perfeito, entregou-os Deus a um
sentimento pervertido, a fim de que fizessem o que não convinha (Rm 1, 28).
Assim os valores do ser ficam substituídos pelos do ter. O único fim que
conta, é a busca do próprio bem-estar material. A chamada « qualidade de vida
» é interpretada prevalente ou exclusivamente como eficiência econômica,
consumismo desenfreado, beleza e prazer da vida física, esquecendo as dimensões
mais profundas da existência, como são as interpessoais, espirituais e
religiosas. Em tal contexto, o sofrimento — peso inevitável da existência
humana mas também fator de possível crescimento pessoal —, é « deplorado
», rejeitado como inútil, ou mesmo combatido como mal a evitar sempre e por
todos os modos. Quando não é possível superá-lo e a perspectiva de um
bem-estar, pelo menos futuro, se desvanece, parece então que a vida perdeu todo
o significado e cresce no homem a tentação de reivindicar o direito à sua
eliminação. Sempre no mesmo horizonte cultural, o corpo deixa de ser visto
como realidade tipicamente pessoal, sinal e lugar da relação com os outros,
com Deus e com o mundo. Fica reduzido à dimensão puramente material: é um
simples complexo de órgãos, funções e energias, que há-de ser usado segundo
critérios de mero prazer e eficiência. conseqüentemente, também a
sexualidade fica despersonalizada e instrumentalizada: em lugar de ser sinal,
lugar e linguagem do amor, ou seja, do dom de si e do acolhimento do outro na
riqueza global da pessoa, torna-se cada vez mais ocasião e instrumento de
afirmação do próprio eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e
instintos.
Deste modo se deforma e falsifica o conteúdo original da sexualidade
humana, e os seus dois significados — unitivo e procriativo —, inerentes à
própria natureza do ato conjugal, acabam artificialmente separados: assim a união
é atraiçoada e a fecundidade fica sujeita ao arbítrio do homem e da mulher. A
geração torna-se, então, o « inimigo » a evitar no exercício da
sexualidade: se aceite, é-o apenas porque exprime o próprio desejo ou mesmo a
determinação de ter o filho « a todo o custo », e não já porque significa
total acolhimento do outro e, por conseguinte, abertura à riqueza de vida que o
filho é portador. Na perspectiva materialista até aqui descrita, as relações
interpessoais experimentam um grave empobrecimento. E os primeiros a sofrerem os
danos são a mulher, a criança, o enfermo ou atribulado, o idoso. O critério
próprio da dignidade pessoal — isto é, o do respeito, do altruísmo e do
serviço — é substituído pelo critério da eficiência, do funcional e da
utilidade: o outro é apreciado não por aquilo que « é », mas por aquilo que
« tem, faz e rende ». É a supremacia do mais forte sobre o mais fraco.
24. É no íntimo da consciência moral que se consuma o eclipse do sentido de
Deus e do homem, com todas as suas múltiplas e funestas conseqüências sobre a
vida. Em questão está, antes de mais, a consciência de cada pessoa, onde
esta, na sua unicidade e irrepetibilidade, se encontra a sós com Deus.18 Mas,
em certo sentido, é posta em questão também a « consciência moral » da
sociedade: esta é, de algum modo, responsável, não só porque tolera ou
favorece comportamentos contrários à vida, mas também porque alimenta a «
cultura da morte », chegando a criar e consolidar verdadeiras e próprias «
estruturas de pecado » contra a vida. A consciência moral, tanto do indivíduo
como da sociedade, está hoje — devido também à influência invasora de
muitos meios de comunicação social —, exposta a um perigo gravíssimo e
mortal: o perigo da confusão entre o bem e o mal, precisamente no que se refere
ao fundamental direito à vida. Uma parte significativa da sociedade atual
revela-se tristemente semelhante àquela humanidade que Paulo descreve na Carta
aos Romanos. É feita « de homens que sufocam a verdade na injustiça » (1,
18): tendo renegado Deus e julgando poder construir a cidade terrena sem Ele, «
desvaneceram nos seus pensamentos », pelo que « se obscureceu o seu insensato
coração » (1, 21); « considerando-se sábios, tornaram-se néscios » (1,
22), fizeram-se autores de obras dignas de morte, e « não só as cometem, como
também aprovam os que as praticam » (1, 32). Quando a consciência, esse
luminoso olhar da alma (cf. Mt 6, 22-23), chama « bem ao mal e mal ao bem »
(Is 5, 20), está já no caminho da sua degeneração mais preocupante e da mais
tenebrosa cegueira moral. Mas todos esses condicionalismos e tentativas de impor
silêncio não conseguem sufocar a voz do Senhor, que ressoa na consciência de
cada homem: é sempre deste sacrário íntimo da consciência que pode recomeçar
um novo caminho de amor, de acolhimento e de serviço à vida humana.
« Aproximaste-vos do sangue de aspersão » (cf. Hb 12, 22.24): sinais de
esperança e convite ao compromisso
25. « A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim! » (Gn 4, 10). Não
é só a voz do sangue de Abel, o primeiro inocente morto, a gritar por Deus,
fonte e defensor da vida. Também o sangue de todos os outros homens,
assassinados depois de Abel, é voz que brada ao Senhor. De uma forma
absolutamente única, porém, grita a Deus a voz do sangue de Cristo, de quem
Abel, na sua inocência, é figura profética, como nos recorda o autor da Carta
aos Hebreus: « Vós, porém, aproximaste-vos do monte de Sião, da cidade do
Deus vivo, (...) de Jesus, o Mediador da Nova Aliança, e de um sangue de aspersão
que fala melhor do que o de Abel » (12, 22.24). É o sangue de aspersão. Símbolo
e sinal prefigurador dele fora o sangue dos sacrifícios da Antiga Aliança, com
os quais Deus exprimia a vontade de comunicar a sua vida aos homens,
purificando-os e consagrando-os (cf. Ex 24, 8; Lv 17, 11). Agora em Cristo, tudo
isso se cumpre e realiza: o d-Ele é o sangue de aspersão que redime, purifica
e salva; é o sangue do Mediador da Nova Aliança, « derramado por muitos, em
remissão dos pecados » (Mt 26, 28). Este sangue, que brota do peito
trespassado de Cristo na Cruz (cf. Jo 19, 34), « fala melhor » do que o sangue
de Abel; aquele, com efeito, exprime e exige uma « justiça » mais profunda,
mas sobretudo implora misericórdia,19 torna-se junto do Pai intercessão pelos
irmãos (cf. Hb 7, 25), é fonte de perfeita redenção e dom de vida nova. O
sangue de Cristo, ao mesmo tempo que revela a grandeza do amor do Pai, manifesta
também como o homem é precioso aos olhos de Deus e quão inestimável seja o
valor da sua vida. Isto mesmo nos recorda o apóstolo Pedro: « Sabei que fostes
resgatados da vossa vã maneira de viver, recebida por tradição dos vossos
pais, não a preço de coisas corruptíveis, prata ou ouro, mas pelo sangue
precioso de Cristo, como de um cordeiro imaculado e sem defeito algum » (1 Pd
1, 18-19). Contemplando precisamente o sangue precioso de Cristo, sinal da sua
doação de amor (cf. Jo 13, 1), o crente aprende a reconhecer e a apreciar a
dignidade quase divina de cada homem, e pode exclamar com incessante e
agradecida admiração: « Que grande valor deve ter o homem aos olhos do
Criador, se -mereceu tão grande Redentor- (Peritoneu Pascal), se -Deus deu o
seu Filho-, para que ele, o homem, -não pereça, mas tenha a vida eterna- (cf.
Jo 3, 16) »! 20 Além disso, o sangue de Cristo revela ao homem que a sua
grandeza e, conseqüentemente, a sua vocação consiste no dom sincero de si.
Precisamente porque é derramado como dom de vida, o sangue de Jesus já não é
sinal de morte, de separação definitiva dos irmãos, mas instrumento de uma
comunhão que é riqueza de vida para todos. Quem, no sacramento da Eucaristia,
bebe este sangue e permanece em Jesus (cf. Jo 6, 56), vê-se associado ao mesmo
dinamismo de amor e doação de vida d-Ele, para levar à plenitude a primordial
vocação ao amor que é própria de cada homem (cf. Gn 1, 27; 2, 18-24). É,
enfim, do sangue de Cristo que todos os homens recebem a força para se
empenharem a favor da vida. Precisamente esse sangue é o motivo mais forte de
esperança, melhor é o fundamento da certeza absoluta de que, segundo o desígnio
de Deus, a vitória será da vida.
« Nunca mais haverá morte » — exclama a
voz poderosa que sai do trono de Deus na Jerusalém celeste (Ap 21, 4). E S.
Paulo assegura-nos que a vitória atual sobre o pecado é sinal e antecipação
da vitória definitiva sobre a morte, quando « se cumprirá o que está
escrito: -A morte foi tragada pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória?
Onde está, ó morte, o teu aguilhão?- » (1 Cor 15, 54-55).
26. Na realidade, não faltam prenúncios desta vitória nas nossas sociedade e
culturas, apesar de marcadas tão fortemente pela « cultura da morte ».
Dar-se-ia, por conseguinte, uma imagem unilateral que poderia induzir a um estéril
desânimo, se a denúncia das ameaças contra a vida não fosse acompanhada pela
apresentação dos sinais positivos, operantes na atual situação da
humanidade. Infelizmente, estes sinais positivos têm com freqüência
dificuldade em manifestar-se e ser reconhecidos, talvez também porque não
recebem adequada atenção dos meios de comunicação social.
Mas quantas
iniciativas de ajuda e amparo às pessoas mais débeis e indefesas surgiram —
e continuam a surgir — na comunidade cristã e na sociedade, a nível local,
nacional e internacional, por obra de indivíduos, grupos, movimentos e organizações
de vário gênero! Muitos são ainda os esposos que, com generosa
responsabilidade, sabem acolher os filhos como « o maior dom do matrimônio ».21
E não faltam famílias que, para além do seu serviço quotidiano à vida,
sabem também abrir-se ao acolhimento de crianças abandonadas, de adolescentes
e jovens em dificuldade, de pessoas inválidas, de idosos que vivem na solidão.
Numerosos são os centros de ajuda à vida ou instituições análogas,
dinamizadas por pessoas e grupos que, com admirável dedicação e sacrifício,
oferecem apoio moral e material às mães em dificuldade, tentadas a recorrer ao
aborto. Surgem e multiplicam-se ainda os grupos de voluntários, empenhados em
dar hospitalidade a quem não tem família, encontra-se em condições de
particular dificuldade ou precisa de reencontrar um ambiente educativo que o
ajude a superar hábitos destrutivos e recuperar o sentido da vida. A medicina,
promovida com grande empenho por investigadores e profissionais, prossegue no
seu esforço por encontrar remédios cada vez mais eficazes: resultados, antes
totalmente impensáveis e capazes de abrir promissoras perspectivas, são hoje
obtidos em favor da vida nascente, das pessoas que sofrem e dos doentes em fase
grave ou terminal. Várias entidades e organizações se mobilizam para levar
aos países mais atingidos pela miséria e por doenças crônicas, tais benefícios
da medicina mais avançada. Do mesmo modo, associações nacionais e
internacionais de médicos movem-se rapidamente, para prestar socorro às populações
provadas por calamidades naturais, epidemias ou guerras. Apesar de estar ainda
longe da sua plena consecução uma verdadeira justiça internacional na
partilha dos recursos médicos, como não reconhecer, nos passos até agora
dados, o sinal de crescente solidariedade entre os povos, de apreciável
sensibilidade humana e moral, e de maior respeito pela vida?
27. Face a legislações que permitiram o aborto e a tentativas, aqui e além
concretizadas, de legalizar a eutanásia, surgiram em todo o mundo movimentos e
iniciativas de sensibilização social a favor da vida. Quando estes movimentos,
de acordo com a sua inspiração autêntica, agem com determinada firmeza mas
sem recorrer à violência, então eles favorecem uma tomada de consciência
mais ampla e profunda do valor da vida, fazem apelo e realizam um empenho mais
decisivo em sua defesa.
Como não recordar, além disso, todos aqueles gestos diários
de acolhimento, de sacrifício, de cuidado desinteressado, que um número
incalculável de pessoas realiza com amor nas famílias, nos hospitais, nos
orfanatos, nos lares da terceira idade, e noutros centros ou comunidades em
defesa da vida? A Igreja, deixando-se guiar pelo exemplo de Jesus, « bom
samaritano » (cf. Lc 10, 29-37), e sustentada pela sua força, sempre esteve em
primeira fila nestes confins da caridade: muitos dos seus filhos e filhas,
especialmente religiosas e religiosos, em formas antigas e novas, consagraram e
continuam a consagrar a sua vida a Deus, dando-a por amor do próximo mais débil
e necessitado.
Estes gestos constroem em profundidade aquela « civilização do
amor e da vida », sem a qual a existência das pessoas e da sociedade perde o
seu significado humano mais autêntico. Ainda que ninguém os notasse, e
ficassem escondidos aos olhos dos outros, a fé assegura que o Pai, « que vê
no segredo » (Mt 6, 4), saberá não só recompensá-los, mas também torná-los
desde já fecundos de frutos duradouros para todos. Entre os sinais de esperança,
há que incluir ainda o crescimento, em muitos estratos da opinião pública, de
uma nova sensibilidade cada vez mais contrária à guerra como instrumento de
solução dos conflitos entre os povos, e sempre mais inclinada à busca de
instrumentos eficazes, mas « não violentos », para bloquear o agressor
armado.
No mesmo horizonte, se coloca igualmente a aversão cada vez mais difusa
na opinião pública à pena de morte — mesmo vista só como instrumento de «
legítima defesa » social —, tendo em consideração as possibilidades que
uma sociedade moderna dispõe para reprimir eficazmente o crime, de forma que,
enquanto torna inofensivo aquele que o cometeu, não lhe tira definitivamente a
possibilidade de se redimir. Também ocorre saudar favoravelmente a atenção
crescente à qualidade de vida e à ecologia, que se registra sobretudo nas
sociedades mais avançadas, nas quais os anseios das pessoas já não estão
concentrados tanto sobre os problemas da sobrevivência como sobretudo na
procura de um melhoramento global das condições de vida. Particularmente
significativo é o despertar da reflexão ética acerca da vida: a aparição e
o desenvolvimento cada vez maior da bioética favoreceu a reflexão e o diálogo
— entre crentes e não crentes, como também entre crentes de diversas religiões
— sobre problemas éticos, mesmo fundamentais, que dizem respeito à vida do
homem.
28. Este horizonte de luzes e sombras deve tornar-nos, a todos, plenamente
conscientes de que nos encontramos perante um combate gigantesco e dramático
entre o mal e o bem, a morte e a vida, a « cultura da morte » e a « cultura
da vida ». Encontramo-nos não só « diante », mas necessariamente « no meio
» de tal conflito: todos estamos implicados e tomamos parte nele, com a
responsabilidade iniludível de decidir incondicionalmente a favor da vida. Também
para nós, ressoa claro e forte o convite de Moisés: « Vê, ofereço-te hoje,
de um lado, a vida e o bem; do outro, a morte e o mal. (...) Coloco diante de ti
a vida e a morte, a felicidade e a maldição. Escolhe a vida, e então viverás
com toda a tua posteridade » (Dt 30, 15.19). É um convite muito apropriado
para nós, chamados cada dia a ter de escolher entre a « cultura da vida » e a
« cultura da morte ».
Mas o apelo do deuteronômio é ainda mais profundo,
porque nos chama a uma opção especificamente religiosa e moral. Trata-se de
dar à própria existência uma orientação fundamental, vivendo com fidelidade
e coerência a Lei do Senhor: « Recomendo-te hoje que ames o Senhor, teu Deus,
que andes nos seus caminhos, que guardes os seus preceitos, suas leis e seus
decretos. (...) Escolhe a vida, e então viverás com toda a tua posteridade.
Ama o Senhor, teu Deus, escuta a sua voz e permanece-Lhe fiel, porque é Ele a
tua vida e a longevidade dos teus dias » (30, 16.19-20). A decisão
incondicional a favor da vida atinge em plenitude o seu significado religioso e
moral, quando brota, é plasmada e alimentada pela fé em Cristo. Nada ajuda
tanto a enfrentar positivamente o conflito entre a morte e a vida, no qual
estamos imersos, como a fé no Filho de Deus que Se fez homem e veio habitar
entre os homens, « para que tenham vida, e a tenham em abundância » (Jo 10,
10): é a fé no Ressuscitado, que venceu a morte; é a fé no sangue de Cristo
« que fala melhor do que o de Abel » (Hb 12, 24). Assim, com a luz e a força
desta fé, perante os desafios da situação atual, a Igreja toma consciência
mais viva da graça e da responsabilidade, que lhe vêm do seu Senhor, de
anunciar, celebrar e servir o Evangelho da vida.
CAPÍTULO II
VIM PARA QUE TENHAM VIDA A MENSAGEM CRISTÃ SOBRE A VIDA
« A vida manifestou-se, nós vimo-la » (1 Jo 1, 2): o olhar voltado para
Cristo, « o Verbo da vida »
29. Frente às inumeráveis e graves ameaças contra a vida, presentes no mundo
contemporâneo, poder-se-ia ficar como que dominado por um sentido de impotência
insuperável: jamais o bem poderá ter força para vencer o mal! Este é o
momento em que o Povo de Deus, e nele cada um dos crentes, é chamado a
professar, com humildade e coragem, a própria fé em Jesus Cristo, « o Verbo
da vida » (1 Jo 1, 1). O Evangelho da vida não é uma simples reflexão, mesmo
se original e profunda, sobre a vida humana; nem é apenas um preceito destinado
a sensibilizar a consciência e provocar mudanças significativas na sociedade;
tampouco é a ilusória promessa de um futuro melhor.
O Evangelho da vida é uma
realidade concreta e pessoal, porque consiste no anúncio da própria pessoa de
Jesus. Ao apóstolo Tomé, e nele a cada homem, Jesus apresenta-Se com estas
palavras: « Eu sou o caminho, a verdade e a vida » (Jo 14, 6). A mesma
identidade foi referida a Marta, irmã de Lázaro: « Eu sou a ressurreição e
a vida; quem crê em Mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que
vive e crê em Mim, não morrerá jamais » (Jo 11, 25-26). Jesus é o Filho
que, desde toda a eternidade, recebe a vida do Pai (cf. Jo 5, 26) e veio estar
com os homens, para os tornar participantes deste dom: « Eu vim para que tenham
vida, e a tenham em abundância » (Jo 10, 10). Deste modo, a possibilidade de
« conhecer » a verdade plena sobre o valor da vida humana é oferecida ao
homem pela palavra, a ação e a própria pessoa de Jesus; e desta « fonte »,
vem-lhe, de forma especial, a capacidade de « praticar » perfeitamente tal
verdade (cf. Jo 3, 21), ou seja, a capacidade de assumir e realizar em plenitude
a responsabilidade de amar e servir, de defender e promover a vida humana. Em
Cristo, de fato, é anunciado definitivamente e concedido plenamente aquele
Evangelho da vida, que, oferecido já na Revelação do Antigo Testamento e,
antes ainda, de algum modo escrito no próprio coração de cada homem e mulher,
ressoa em toda a consciência « desde o princípio », ou seja, desde a própria
criação, de tal modo que, não obstante os condicionalismos negativos do
pecado, pode também ser conhecido nos seus traços essenciais pela razão
humana.
Como escreve o Concílio Vaticano II, Cristo « com toda a sua presença
e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e
sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição, enfim, com o envio do Espírito
da verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a revelação,
a saber, que Deus está conosco para nos libertar das trevas do pecado e da
morte e para nos ressuscitar para a vida eterna ».22
30. É, pois, com o olhar fixo no Senhor Jesus que desejamos novamente escutar
d-Ele « as palavras de Deus » (Jo 3, 34) e meditar o Evangelho da vida. O
sentido mais profundo e original desta meditação sobre a mensagem revelada
relativa à vida humana foi recolhido pelo apóstolo João, quando escreve, no
início da sua Primeira Carta: « O que era desde o princípio, o que ouvimos, o
que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam
acerca do Verbo da vida, — porque a vida manifestou-se, nós vimo-la, damos
testemunho dela e vos anunciamos esta vida eterna que estava no Pai e que nos
foi manifestada — o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também
vós tenhais comunhão conosco » (1, 1-3).
Então, a vida divina e eterna é
anunciada e comunicada em Jesus, « Verbo da vida ». Graças a este anúncio e
a este dom, a vida física e espiritual do homem, mesmo na sua fase terrena,
adquire plenitude de valor e significado: com efeito, a vida divina e eterna é
o fim, para o qual está orientado e chamado o homem que vive neste mundo.
Assim, o Evangelho da vida encerra tudo aquilo que a própria experiência e a
razão humana dizem acerca do valor da vida humana: acolhe-o, eleva-o e condu-lo
à sua plena realização.
« O Senhor é a minha força e a minha glória, foi Ele quem me salvou » (Ex
15, 2): a vida é sempre um bem
31. Na verdade, a plenitude evangélica do anúncio sobre a vida fora preparada
já no Antigo Testamento. É sobretudo nos acontecimentos do Êxodo, fulcro da
experiência de fé do Antigo Testamento, que Israel descobre quão preciosa é
aos olhos de Deus a sua vida. Quando já parece votado ao extermínio, dado que
sobre todos os seus recém-nascidos do sexo masculino grava a ameaça de morte
(cf. Ex 1, 15-22), o Senhor revela-Se-lhes como salvador, capaz de assegurar um
futuro a quem vive sem esperança. Nasce, assim, em Israel uma certeza bem
precisa: a sua vida não se acha à mercê de um faraó que a pode usar com despótico
arbítrio; mas, ao contrário, é objeto de um terno e intenso amor da parte de
Deus.
A libertação da escravidão é o dom de uma identidade, o reconhecimento
de uma dignidade indelével e o início de uma história nova, na qual caminham
lado a lado a descoberta de Deus e a descoberta de si próprio. A experiência
do Êxodo é constitutiva e paradigmática. Lá Israel compreendeu que, todas as
vezes que estiver ameaçado na sua existência, terá apenas de recorrer a Deus
com renovada confiança para encontrar n-Ele eficaz assistência: « Formei-te,
tu és meu servo; Israel, não te posso esquecer » (Is 44, 21). Assim, enquanto
reconhece o valor da própria existência como povo, Israel avança também na
percepção do sentido e valor da vida como tal.
É uma reflexão que se
desenvolve particularmente nos Livros Sapienciais, partindo da experiência
quotidiana da precariedade da vida e da consciência das ameaças que a tramam.
Diante das contradições da existência, a fé é chamada a dar uma resposta.
É sobretudo o problema da dor, o que mais pressiona a fé e a põe à prova.
Como não identificar o gemido universal do homem na meditação do Livro de
Jó? O inocente esmagado pelo sofrimento é compreensivelmente levado a
interrogar-se: « Por que razão foi concedida a luz ao infeliz, e a vida àquele
cuja alma está desconsolada, os quais esperam a morte sem que ela venha e a
procuram com mais ardor que um tesouro? » (3, 20-21). Mas, mesmo na escuridão
mais densa, a fé encaminha para o reconhecimento confiante e adorador do «
mistério »: « Sei que podes tudo e que nada Te é impossível » (Jó 42,2).
Progressivamente a Revelação faz ver, com uma clareza cada vez maior, o germe
de vida imortal posto pelo Criador no coração dos homens: « Todas as coisas
que Deus fez são boas no seu tempo. Além disso, pôs no coração 1 a duração
inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao outro
» (Ecl 3, 11). Este germe de totalidade e plenitude anseia por se manifestar no
amor e realizar-se, por dom gratuito de Deus, na participação da sua vida
eterna. « Pela fé no nome de Jesus, este homem recobrou as forças » (At 3,
16): na precariedade da existência humana, Jesus realiza plenamente o sentido
da vida
32. A experiência do povo da Aliança renova-se em todos os « pobres » que
encontram Jesus de Nazaré. Como Deus, « amante da vida » (Sb 11, 26), já
tinha tranqüilizado Israel no meio dos perigos, assim agora o Filho de Deus
anuncia a quantos se sentem ameaçados e limitados na própria existência, que
a sua vida é um bem, ao qual o amor do Pai dá sentido e valor. « Os cegos vêem,
os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos
ressuscitam, a boa nova é anunciada aos pobres » (Lc 7, 22).
Com estas
palavras do profeta Isaías (35, 5-6; 61,1), Jesus apresenta o significado da
sua própria missão: deste modo, aqueles que sofrem por causa de uma existência
de qualquer modo « limitada » ouvem d-Ele a boa nova do interesse que Deus
nutre por eles e têm a confirmação de que também a sua vida é um dom
zelosamente guardado nas mãos do Pai (cf. Mt 6, 25-34). Quem se sente
particularmente interpelado pela pregação e ação de Jesus, são os « pobres
». As multidões de doentes e marginalizados, que O seguem e procuram (cf. Mt
4, 23-25), encontram na sua palavra e nos seus gestos a revelação do valor
imenso da vida deles e de quão fundados sejam os seus anseios de salvação.
Acontece o mesmo na missão da Igreja, já desde as suas origens. Ao anunciar
Jesus como Aquele que « andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos
os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele » (At 10, 38), ela
sabe que é portadora de uma mensagem de salvação que ressoa, com toda a sua
novidade, precisamente nas situações de miséria e pobreza da vida humana.
Assim faz Pedro, ao curar o paralítico que estava colocado diariamente junto da
porta « Formosa » do templo de Jerusalém a pedir esmola: « Não tenho ouro
nem prata, mas vou dar-te o que tenho: Em nome de Jesus Cristo Nazareno,
levanta-te e anda! » (At 3, 6). Pela fé em Jesus, « Príncipe da vida » (At 3, 15), a vida que ali jaz abandonada e suplicante, reencontra a consciência de
si mesma e a sua plena dignidade. A palavra e os gestos de Jesus e da sua Igreja
não dizem respeito apenas a quem está enfermo, aflito pela provação, ou é vítima
das diversas formas de marginalização social. Vão mais fundo, tocando o próprio
sentido da vida de cada homem nas suas dimensões morais e espirituais. Só quem
reconhece que a própria vida está tocada pelas mazelas do pecado, pode
reencontrar a verdade e a autenticidade da própria existência junto de Jesus
Salvador, segundo as suas próprias palavras: « Não são os que têm saúde
que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não foram os justos, mas os
pecadores, que Eu vim chamar ao arrependimento » (Lc 5, 31-32). Pelo contrário,
aquele que à semelhança do rico agricultor da parábola evangélica julga
poder assegurar a própria vida com a posse de simples bens materiais, na
realidade engana-se. A vida está-lhe escapando, e bem depressa ficará privado
dela sem ter chegado a perceber o seu verdadeiro significado: « Insensato!
Nesta mesma noite, pedir-te-ão a tua alma; e o que acumulaste para quem será?
» (Lc 12, 20).
33. Na vida de Jesus, desde o início até ao fim, encontra-se esta « dialética
» singular entre a experiência da contingência da vida humana e a afirmação
do seu valor. De fato, a precariedade caracteriza a vida de Jesus, desde o seu
nascimento. Ele depara certamente com o acolhimento dos justos, que se unem ao
« sim » pronto e feliz de Maria (cf. Lc 1, 38). Mas logo aparece também a
rejeição por parte de um mundo que se torna hostil e procura o Menino « para
O matar » (Mt 2, 13), ou então fica indiferente e alheio ao cumprimento do
mistério desta vida que entra no mundo: « não havia para eles lugar na
hospedaria » (Lc 2, 7). exatamente por este contraste — as ameaças e
inseguranças, por um lado, e o poder do dom de Deus, pelo outro — resplandece
com maior força a glória que irradia da casa de Nazaré e da manjedoura de Belém:
esta vida que nasce é salvação para a humanidade inteira (cf. Lc 2, 10-11).
As contradições e riscos da vida são assumidos plenamente por Jesus: « sendo
rico, fez-Se pobre por vós, a fim de vos enriquecer pela pobreza » (2 Cor 8,
9). Esta pobreza, de que fala Paulo, não é apenas despojamento dos privilégios
divinos, mas também partilha das condições mais humildes e precárias da vida
humana (cf. Fl 2, 6-7). Jesus vive esta pobreza ao longo de toda a sua vida até
ao momento culminante da cruz: « Humilhou-Se a Si mesmo, feito obediente até
à morte e morte de cruz. Por isso é que Deus O exaltou e Lhe deu um nome que
está acima de todo o nome » (Fl 2, 8-9). É precisamente na sua morte que
Jesus revela toda a grandeza e valor da vida, enquanto a sua doação na cruz se
torna fonte de vida nova para todos os homens (cf. Jo 12, 32). Neste peregrinar
por entre as contradições e a própria perda da vida, Jesus é guiado pela
certeza de que ela está nas mãos do Pai. Por isso, na cruz pode dizer-Lhe: «
Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito » (Lc 23, 46), isto é, a minha
vida. Verdadeiramente grande é o valor da vida humana, se o Filho de Deus a
assumiu e fez dela o lugar onde se realiza a salvação para a humanidade
inteira!
« Chamados (...) a ser conformes à imagem do Seu Filho » (Rm 8, 28-29): a glória
de Deus resplandece no rosto do homem
34. A vida é sempre um bem. Esta é uma intuição ou até um dado de experiência,
cuja razão profunda o homem é chamado a compreender. Por que motivo a vida é
um bem? Esta pergunta percorre a Bíblia inteira, encontrando já nas primeiras
páginas uma resposta eficaz e admirável. A vida que Deus dá ao homem é
diversa e original, se comparada com a de qualquer outra criatura viva, dado que
ele, apesar de emparentado com o pó da terra (cf. Gn 2, 7; 3, 19;
Jó 34, 15;
Sl 103/102, 14; 104/103, 29), é, no mundo, manifestação de Deus, sinal da sua
presença, vestígio da sua glória (cf. Gn 1, 26-27;
Sl 8, 6).
Isto mesmo quis
sublinhar Santo Ireneu de Lião, com a célebre definição: « A glória de
Deus é o homem vivo ».23 Ao homem foi dada uma dignidade sublime, que tem as
suas raízes na ligação íntima que o une ao seu Criador: no homem, brilha um
reflexo da própria realidade de Deus. Afirma-o o Livro do gênesis, na primeira
narração das origens, ao colocar o homem no vértice da atividade criadora de
Deus, como seu coroamento, no termo de um processo que vai do caos indefinido até
à criatura mais perfeita. Na criação, tudo está ordenado para o homem e tudo
lhe fica submetido: « Enchei e dominai a terra. Dominai (...) sobre todos os
animais que se movem na terra » (1, 28) — ordena Deus ao homem e à mulher.
Mensagem semelhante aparece também no outro relato das origens: « O Senhor
levou o homem e colocou-o no jardim do Éden para o cultivar e, também, para o
guardar » (Gn 2, 15). Confirma- -se assim o primado do homem sobre as coisas:
estas estão ordenadas ao homem e entregues à sua responsabilidade, enquanto
por nenhuma razão pode o homem ser subjugado pelos seus semelhantes e como que
reduzido ao estatuto de coisa. Na narração bíblica, a distinção entre o
homem e as demais criaturas é evidenciada sobretudo pelo fato de apenas a sua
criação ser apresentada como fruto de uma especial decisão da parte de Deus,
de uma deliberação que consiste em estabelecer uma ligação particular e
específica com o Criador: « Façamos o homem à nossa imagem, à nossa
semelhança » (Gn 1, 26).
A vida que Deus oferece ao homem, é um dom, pelo
qual Deus participa algo de Si mesmo à sua criatura. Israel interrogar-se-á
longamente acerca do sentido desta ligação particular e específica do homem
com Deus. O Livro de Ben-Sirá reconhece que Deus, ao criar os homens, «
revestiu-os da força conveniente e fê-los à própria imagem » (17, 3). E a
isso subordina o autor sagrado, não só o domínio sobre o mundo, mas também
as faculdades espirituais mais específicas do homem, como a razão, o
discernimento do bem e do mal, a vontade livre: « Encheu-os de saber e inteligência,
e mostrou-lhes o bem e o mal » (Sir 17, 7). A capacidade de alcançar a verdade
e a liberdade são prerrogativas do homem enquanto criatura feita à imagem do
seu Criador, o Deus verdadeiro e justo (cf. Dt 32, 4). Dentre todas as criaturas
visíveis, apenas o homem é « capaz de conhecer e amar o seu Criador ».24 A
vida que Deus dá ao homem, é muito mais do que uma existência no tempo. É
tensão para uma plenitude de vida; é germe de uma existência que ultrapassa
os próprios limites do tempo: « Deus criou o homem para a incorruptibilidade,
e fê-lo à imagem da sua própria natureza » (Sb 2, 23).
35. Também o relato jahvista das origens exprime a mesma convicção. Esta
antiga narração fala de um sopro divino que é insuflado no homem, para que
este dê entrada na vida: « O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e
insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser
vivo » (Gn 2, 7). A origem divina deste espírito de vida explica a perene
insatisfação que acompanha o homem, ao longo dos seus dias. Obra plasmada pelo
Senhor e trazendo em si mesmo um traço indelével de Deus, o homem tende
naturalmente para Ele. Quando escuta o anseio profundo do coração, não pode
deixar de fazer sua esta afirmação de Santo Agostinho: « Criastes-nos para Vós,
Senhor, e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós ».25
Como é eloqüente aquela insatisfação que se apodera da vida do homem no Éden,
quando lhe resta como única referência o mundo vegetal e animal (cf. Gn 2,
20)! Somente a aparição da mulher, isto é, de um ser que é carne da sua
carne e osso dos seus ossos (cf. Gn 2, 23) e no qual vive igualmente o espírito
de Deus Criador, pode satisfazer a exigência de diálogo interpessoal, tão
vital para a existência humana. No outro, homem ou mulher, reflecte-Se o próprio
Deus, abrigo definitivo e plenamente feliz de toda a pessoa. « Que é o homem
para Vos lembrardes dele, o filho do homem para dele cuidardes? » —
interroga-se o Salmista (Sl 8, 5).
Diante da imensidão do universo, coisa bem
pequena é o homem; mas é precisamente este contraste que faz sobressair a sua
grandeza: « Pouco lhe falta para que seja um ser divino; de glória e de honra
o coroastes » (Sl 8, 6). A glória de Deus resplandece no rosto do homem.
Nele, o Criador encontra o seu repouso, como comenta, maravilhado e comovido,
Santo Ambrósio: « Terminou o sexto dia, ficando concluída a criação do
mundo com a formação daquela obra-prima, o homem, que exerce o domínio sobre
todos os seres vivos e é como que o ápice do universo e a suprema beleza de
todo o ser criado.
Verdadeiramente deveremos manter um silêncio reverente, já
que o Senhor Se repousou de toda a obra do mundo. Repousou-Se no íntimo do
homem, repousou-Se na sua mente e no seu pensamento; de fato, tinha criado o
homem dotado de razão, capaz de O imitar, êmulo das suas virtudes, desejoso
das graças celestes. Nestes seus dotes, repousa Deus que disse: -Sobre quem
repousarei senão naquele que é humilde, pacífico e teme as minhas palavras?-
(Is 66, 1-2). Agradeço ao Senhor nosso Deus que criou uma obra tão maravilhosa
que nela encontra o seu repouso ».26 36. Infelizmente, este projeto maravilhoso
de Deus ficou ofuscado pela irrupção do pecado na história. Com o pecado, o
homem revolta-se contra o Criador, acabando por idolatrar as criaturas: «
Veneraram a criatura e prestaram-lhe culto de preferência ao Criador » (Rm 1,
25).
Deste modo, o ser humano não só deturpa a imagem de Deus em si mesmo, mas
é tentado a ofendê-la também nos outros, substituindo as relações de comunhão
por atitudes de desconfiança, indiferença, inimizade, até chegar ao ódio
homicida. Quando não se reconhece Deus como tal, atraiçoa-se o sentido
profundo do homem e prejudica-se a comunhão entre os homens. Na vida do homem,
a imagem de Deus volta a resplandecer e manifesta-se em toda a sua plenitude com
a vinda do Filho de Deus em carne humana: « Ele é a imagem do Deus invisível
» (Cl 1, 15), « o resplendor da sua glória e a imagem da sua substância »
(Hb 1, 3). Ele é a imagem perfeita do Pai.
O projeto de vida confiado ao
primeiro Adão encontra finalmente em Cristo a sua realização. Enquanto a
desobediência de Adão arruína e deturpa o desígnio de Deus sobre a vida do
homem e introduz a morte no mundo, a obediência redentora de Cristo é fonte de
graça que se derrama sobre os homens, abrindo a todos, de par em par, as portas
do reino da vida (cf. Rm 5,12-21).
Afirma o apóstolo Paulo: « O primeiro
homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão é um espírito
vivificante » (1 Cor 15, 45). A todos aqueles que aceitam seguir Cristo, é-lhes
dada a plenitude da vida: neles, a imagem divina é restaurada, renovada e
levada à perfeição. Este é o desígnio de Deus para os seres humanos:
tornarem-se « conformes à imagem do seu Filho » (Rm 8, 29). Só assim, no
esplendor desta imagem, é que o homem pode ser liberto da escravidão da
idolatria, pode reconstruir a fraternidade perdida e reencontrar a sua
identidade. « Quem crê em Mim, ainda que esteja morto viverá » (Jo 11, 26):
o dom da vida eterna 37. A vida que o Filho de Deus veio dar aos homens, não se
reduz meramente à existência no tempo. A vida, que desde sempre está « n-Ele
» e constitui « a luz dos homens » (Jo 1, 4), consiste em ser gerados por
Deus e participar na plenitude do seu amor: « A todos os que O receberam, aos
que crêem n-Ele, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus; eles que não
nasceram do sangue, nem de vontade carnal, nem de vontade do homem, mas sim de
Deus » (Jo 1, 12-13). Umas vezes, Jesus designa esta vida, que Ele veio dar,
simplesmente como « a vida »; e apresenta o ser gerado por Deus como condição
necessária para poder alcançar o fim para o qual o homem foi criado: « Quem não
nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus » (Jo 3, 3). O dom desta vida
constitui o objeto próprio da missão de Jesus; Ele « é Aquele que desce do Céu
e dá a vida ao mundo » (Jo 6, 33), de tal modo que pode afirmar com toda a
verdade: « Quem Me segue (...) terá a luz da vida » (Jo 8, 12). Outras vezes,
Jesus fala de « vida eterna », sem querer com o adjetivo aludir apenas a uma
perspectiva supratemporal. « Eterna » é a vida que Jesus promete e dá,
porque é plenitude de participação na vida do « Eterno ». Todo aquele que
crê em Jesus e vive em comunhão com Ele tem a vida eterna (cf. Jo 3, 15; 6,
40), porque d’Ele escuta as únicas palavras que revelam e infundem plenitude
de vida à sua existência; são as « palavras de vida eterna », que Pedro
reconhece na sua confissão de fé: « Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu
tens palavras de vida eterna; e nós acreditamos e sabemos que és o Santo de
Deus » (Jo 6, 68-69). O que seja essa vida eterna, declara-o Jesus quando se
dirigiu ao Pai na grande oração sacerdotal: « A vida eterna consiste nisto:
que Te conheçam a Ti, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem
enviaste » (Jo 17, 3).
Conhecer a Deus e ao seu Filho é acolher o mistério da
comunhão de amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo, na própria vida que se
abre, já desde agora, à vida eterna pela participação na vida divina. 38.
Por conseguinte, a vida eterna é a própria vida de Deus e simultaneamente a
vida dos filhos de Deus. Um assombro incessante e uma gratidão sem limites não
podem deixar de se apoderar do crente diante desta inesperada e inefável
verdade que nos vem de Deus em Cristo. O crente faz suas as palavras do apóstolo
João: « Vede com que amor nos amou o Pai, ao querer que fôssemos chamados
filhos de Deus. E somo-lo de fato! (...) Caríssimos, agora somos filhos de
Deus, mas ainda não se manifestou o que havemos de ser.
Sabemos, porém, que,
quando Ele Se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele
é » (1Jo 3,1-2). Assim, chega ao seu auge a verdade cristã acerca da vida.
A dignidade desta não está ligada apenas às suas origens, à sua proveniência
de Deus, mas também ao seu fim, ao seu destino de comunhão com Deus no
conhecimento e no amor d’Ele.
É à luz desta verdade que Santo Ireneu
especifica e completa a sua exaltação do homem: « glória de Deus » é, sim,
« o homem vivo », mas « a vida do homem consiste na visão de Deus ».27
Daqui resultam conseqüências imediatas para a vida humana em sua própria
condição terrena, na qual já germinou e está a crescer a vida eterna. Se o
homem ama instintivamente a vida porque é um bem, tal amor encontra ulterior
motivação e força, nova amplitude e profundidade nas dimensões divinas desse
bem. Em semelhante perspectiva, o amor que cada ser humano tem pela vida não se
reduz à simples busca de um espaço onde poder exprimir-se a si mesmo e entrar
em relação com os outros, mas evolui até à certeza feliz de poder fazer da
própria existência o « lugar » da manifestação de Deus, do encontro e
comunhão com Ele. A vida que Jesus nos dá, não desvaloriza a nossa existência
no tempo, mas assume-a e condu-la ao seu último destino: « Eu sou a ressurreição
e a vida; (...) todo aquele que vive e crê em Mim não morrerá jamais » (Jo
11, 25.26).
« A cada um, pedirei contas do seu irmão » (cf. Gn 9, 5): veneração e amor
pela vida dos outros
39. A vida do homem provém de Deus, é dom seu, é imagem e figura d'Ele,
participação do seu sopro vital. Desta vida, portanto, Deus é o único
senhor: o homem não pode dispor dela. Deus mesmo o confirma a Noé, depois do
dilúvio: « Ao homem, pedirei contas da vida do homem, seu irmão » (Gn 9, 5).
E o texto bíblico preocupa-se em sublinhar como a sacralidade da vida tem o seu
fundamento em Deus e na sua ação criadora: « Porque Deus fez o homem à sua
imagem » (Gn 9, 6). Portanto, a vida e a morte do homem estão nas mãos de
Deus, em seu poder: « Deus tem nas suas mãos a alma de todo o ser vivente, e o
sopro de vida de todos os homens » — exclama Jó (12, 10). « O Senhor é que
dá a morte e a vida, leva à habitação dos mortos e retira de lá » (1 Sm
2, 6). Apenas Ele pode afirmar: « Só Eu é que dou a vida e dou a morte » (Dt
32, 39).
Mas Deus não exerce esse poder como arbítrio ameaçador, mas, sim,
como cuidado e solicitude amorosa pelas suas criaturas. Se é verdade que a vida
do homem está nas mãos de Deus, não o é menos que estas são mãos amorosas
como as de uma mãe que acolhe, nutre e toma conta do seu filho: « Fico
sossegado e tranqüilo como criança deitada nos braços de sua mãe, como um
menino deitado é a minha alma » (Sl 131/130, 2; cf. Is 49, 15; 66, 12-13; Os
11, 4). Assim nas vicissitudes dos povos e na sorte dos indivíduos, Israel não
vê o fruto de pura casualidade ou de um destino cego, mas o resultado de um desígnio
de amor, pelo qual Deus resguarda todas as potencialidades da vida e se contrapõe
às forças de morte que nascem do pecado: « Deus não é o autor da morte, a
perdição dos vivos não Lhe dá nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo para
a existência » (Sb 1, 13-14).
40. Da sacralidade da vida dimana a sua inviolabilidade, inscrita desde as
origens no coração do homem, na sua consciência. A pergunta « que fizeste?
» (Gn 4, 10), dirigida por Deus a Caim depois de ter assassinado o irmão Abel,
traduz a experiência de cada homem: no fundo da sua consciência, ele sente
incessantemente o apelo à inviolabilidade da vida — a própria e a alheia
—, como realidade que não lhe pertence, pois é propriedade e dom de Deus
Criador e Pai. O preceito relativo à inviolabilidade da vida humana ocupa o
centro dos « dez mandamentos » na aliança do Sinai (cf. Ex 34, 28). Nele se
proíbe, antes de mais, o homicídio: « Não matarás » (Ex 20, 13), « não
causarás a morte do inocente e do justo » (Ex 23, 7); mas proíbe também —
como se explicita na legislação posterior de Israel — qualquer lesão
infligida a outrem (cf. Ex 21,12-27).
Tem-se de reconhecer que esta
sensibilidade pelo valor da vida no Antigo Testamento, apesar de já tão notável,
não alcança ainda a perfeição do Sermão da Montanha, como resulta de alguns
aspectos da legislação penal então vigente, que previa castigos corporais
pesados e até mesmo a pena de morte. Mas globalmente esta mensagem, que o Novo
Testamento levará à perfeição, é já um forte apelo ao respeito pela
inviolabilidade da vida física e da integridade pessoal, e tem o seu ápice no
mandamento positivo que obriga a cuidar do próximo como de si mesmo: « Amarás
o teu próximo como a ti mesmo » (Lv 19, 18).
41. O mandamento « não matarás », contido e aprofundado no mandamento
positivo do amor do próximo, é confirmado em toda a sua validade pelo Senhor
Jesus. Ao jovem rico que Lhe pede « Mestre, que hei-de fazer de bom para alcançar
a vida eterna? », responde: « Se queres entrar na vida eterna, cumpre os
mandamentos » (Mt 19, 16.17). E, logo em primeiro lugar, cita « não matarás
» (19, 18).
No Sermão da Montanha, Jesus exige dos discípulos uma justiça
superior à dos escribas e fariseus, no campo do respeito pela vida: « Ouvistes
que foi dito aos antigos: -Não matarás; aquele que matar está sujeito a ser
condenado-. Eu, porém, digo-vos: quem se irritar contra o seu irmão será réu
perante o tribunal » (Mt 5, 21-22). Com a sua palavra e os seus gestos, Jesus
explicita ulteriormente as exigências positivas do mandamento referente à
inviolabilidade da vida. Estavam já presentes no Antigo Testamento, onde a
legislação se preocupava em garantir e salvaguardar as situações de vida débil
e ameaçada: o estrangeiro, a viúva, o órfão, o enfermo, o pobre em geral, a
própria vida antes de nascer (cf. Ex 21, 22; 22,20-26).
Mas com Jesus, essas
exigências positivas adquirem novo vigor e ímpeto, manifestando-se em toda a
sua amplitude e profundidade: vão desde o velar pela vida do irmão (familiar,
membro do mesmo povo, estrangeiro que habita na terra de Israel), passam pelo
cuidar do desconhecido, para chegarem até ao amor do inimigo. O desconhecido
deixa de ser tal para quem deve fazer-se próximo de todo aquele que se encontra
necessitado, até assumir a responsabilidade da sua vida, como ensina, de modo
eloqüente e incisivo, a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 25-37).
Também
o inimigo cessa de o ser para quem é obrigado a amá-lo (cf. Mt 5, 38-48; Lc 6,
27-35) e « fazer-lhe bem » (cf. Lc 6, 27.33.35), levando remédio às carências
da sua vida, com prontidão e sem esperar recompensa (cf. Lc 6, 34-35).
No vértice
deste amor, está a oração pelo inimigo, pela qual nos colocamos em sintonia
com o amor providente de Deus: « Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos
e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso
Pai que está nos Céus; pois Ele faz que o sol se levante sobre os bons e os
maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores » (Mt 5, 44-45; cf. Lc
6, 28.35). Assim, o mandamento de Deus, orientado para a defesa da vida do
homem, tem a sua dimensão mais profunda na exigência de veneração e amor por
toda a pessoa e sua vida. Este é o ensinamento que o apóstolo Paulo, dando eco
às palavras de Jesus (cf. Mt 19, 17-18), dirige aos cristãos de Roma: « Com
efeito: -Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás
- e qualquer dos outros mandamentos resumem-se nestas palavras: -Amarás ao próximo
como a ti mesmo-. A caridade não faz mal ao próximo. A caridade é, pois, o
pleno cumprimento da lei » (Rm 13, 9-10).
« Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra » (Gn 1, 28): as
responsabilidades do homem pela vida
42. Defender e promover, venerar e amar a vida é tarefa que Deus confia a cada
homem, ao chamá-lo enquanto sua imagem viva a participar no domínio que Ele
tem sobre o mundo: « Abençoando-os, Deus disse: -Crescei e multiplicai-vos,
enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus
e sobre todos os animais que se movem na terra- » (Gn 1, 28).
O texto bíblico
manifesta claramente a amplitude e profundidade do domínio que Deus concede ao
homem. Trata-se, antes de mais, de domínio sobre a terra e sobre todo o ser
vivo, como recorda o Livro da Sabedoria: « Deus dos nossos pais e Senhor de
misericórdia, (...) formastes o homem pela vossa sabedoria, para dominar sobre
as criaturas a quem destes a vida, para governar o mundo com santidade e justiça
» (9, 1.2-3).
Também o Salmista exalta o domínio do homem como sinal da glória
e honra recebidas do Criador: « Destes-lhe domínio sobre as obras das vossas mãos.
Tudo submetestes debaixo dos seus pés; os rebanhos e os gados sem exceção, até
mesmo os animais selvagens; as aves do céu e os peixes do mar, tudo o que se
move nos oceanos » (Sl 8, 7-9). Chamado a cultivar e guardar o jardim do mundo
(cf. Gn 2, 15), o homem detém uma responsabilidade específica sobre o ambiente
de vida, ou seja, sobre a criação que Deus pôs ao serviço da sua dignidade
pessoal, da sua vida: e isto não só em relação ao presente, mas também às
gerações futuras. É a questão ecológica — desde a preservação do «
habitat » natural das diversas espécies animais e das várias formas de vida,
até à « ecologia humana » propriamente dita 28 — que, no texto bíblico,
encontra luminosa e forte indicação ética para uma solução respeitosa do
grande bem da vida, de toda a vida. Na realidade, « o domínio conferido ao
homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem se pode falar de liberdade de
-usar e abusar-, ou de dispor das coisas como melhor agrade. A limitação
imposta pelo mesmo Criador, desde o princípio, e expressa simbolicamente com a
proibição de -comer o fruto da árvore- (cf. Gn 2, 16-17), mostra com
suficiente clareza que, nas relações com a natureza visível, nós estamos
submetidos a leis, não só biológicas, mas também morais, que não podem
impunemente ser transgredidas ».29
43. Uma certa participação do homem no domínio de Deus manifesta-se também
na específica responsabilidade que lhe está confiada no referente à vida
propriamente humana. Essa responsabilidade atinge o auge na doação da vida,
através da geração por obra do homem e da mulher no matrimônio, como nos
recorda o Concílio Vaticano II: « O mesmo Deus que disse -não é bom que o
homem esteja só- (Gn 2, 18) e que -desde a origem fez o ser humano varão e
mulher- (Mt 19, 4), querendo comunicar uma participação especial na sua obra
criadora, abençoou o homem e a mulher dizendo: -crescei e multiplicai-vos- (Gn
1, 28) ».30 Ao falar de « uma participação especial » do homem e da mulher
na « obra criadora » de Deus, o Concílio pretende pôr em relevo como a geração
do filho é um fato não só profundamente humano mas também altamente
religioso, enquanto implica os cônjuges, que formam « uma só carne » (Gn 2,
24), e simultaneamente o próprio Deus que Se faz presente. Como escrevi na
Carta às Famílias, « quando da união conjugal dos dois nasce um novo homem,
este traz consigo ao mundo uma particular imagem e semelhança do próprio Deus:
na biologia da geração está inscrita a genealogia da pessoa. Ao afirmarmos
que os cônjuges, enquanto pais, são colaboradores de Deus Criador na concepção
e geração de um novo ser humano, não nos referimos apenas às leis da
biologia; pretendemos sobretudo sublinhar que, na paternidade e maternidade
humana, o próprio Deus está presente de um modo diverso do que se verifica em
qualquer outra geração -sobre a terra-. Efetivamente, só de Deus pode provir
aquela -imagem e semelhança- que é própria do ser humano, tal como aconteceu
na criação. A geração é a continuação da criação ».31 Isto mesmo
ensina, com linguagem clara e eloqüente, o texto sagrado ao mencionar o grito
jubiloso da primeira mulher, a « mãe de todos os viventes » (Gn 3, 20);
consciente da intervenção de Deus, Eva exclama: « Gerei um homem com o auxílio
do Senhor » (Gn 4, 1). Assim, na geração, através da comunicação da vida
dos pais ao filho transmite-se, graças à criação da alma imortal,32 a imagem
e semelhança do próprio Deus. Neste sentido, se exprime o início do « livro
da genealogia de Adão »: « Quando Deus criou o homem, fê-lo à semelhança
de Deus. Criou-os varão e mulher, e abençoou-os. Deu-lhes o nome de Homem no
dia em que os criou. Com cento e trinta anos, Adão gerou um filho à sua imagem
e semelhança, e pôs-lhe o nome de Set » (Gn 5, 1-3).
Precisamente neste papel
de colaboradores de Deus, que transmite a sua imagem à nova criatura, está a
grandeza dos cônjuges, dispostos « a colaborar com o amor do Criador e
Salvador, que por meio deles aumenta cada dia mais e enriquece a sua família ».33
À luz disto, o bispo Anfilóquio exaltava o « matrimônio santo, eleito e
elevado acima de todos os dons terrenos », porque « gerador da humanidade, artífice
de imagens de Deus ».34 Assim o homem e a mulher, unidos pelo matrimônio, estão
associados a uma obra divina: por meio do ato da geração, o dom de Deus é
acolhido, e uma nova vida se abre ao futuro. Mas, uma vez realçada a missão
específica dos pais, há que acrescentar: a obrigação de acolher e servir a
vida compete a todos e deve manifestar-se sobretudo a favor da vida em condições
de maior fragilidade.
É o próprio Cristo quem no-lo recorda, ao pedir para ser
amado e servido nos irmãos provados por qualquer tipo de sofrimento: famintos,
sedentos, estrangeiros, nus, doentes, encarcerados... Aquilo que for feito a
cada um deles, é feito ao próprio Cristo (cf. Mt 25, 31-46).
« Vós é que plasmastes o meu interior » (Sl 139/138, 13): a dignidade da
criança ainda não nascida
44. A vida humana atravessa situações de grande fragilidade, quer ao entrar no
mundo, quer quando sai do tempo para ir ancorar-se na eternidade. Na Palavra de
Deus, encontramos numerosos apelos ao cuidado e respeito pela vida, sobretudo
quando esta aparece ameaçada pela doença e pela velhice. Se faltam apelos
diretos e explícitos para salvaguardar a vida humana nas suas origens,
especialmente a vida ainda não nascida, ou então a vida próxima do seu termo,
isso explica-se facilmente pelo fato de que a mera possibilidade de ofender,
agredir ou mesmo negar a vida em tais condições estava fora do horizonte
religioso e cultural do Povo de Deus. No Antigo Testamento, a esterilidade era
temida como uma maldição, enquanto se considerava uma bênção a prole
numerosa: « Os filhos são bênçãos do Senhor; os frutos do ventre, um mimo
do Senhor » (Sl 127/126, 3; cf.
Sl 128/127, 3-4). Para esta convicção,
concorre certamente a consciência que Israel tem de ser o povo da Aliança,
chamado a multiplicar-se segundo a promessa feita a Abraão: « Ergue os olhos
para os céus e conta as estrelas, se fores capaz de as contar (...) será assim
a tua descendência » (Gn 15, 5). Mas influi sobretudo a certeza de que a vida
transmitida pelos pais tem a sua origem em Deus, como o atestam tantas páginas
bíblicas que, com respeito e amor, falam da concepção, da moldagem da vida no
ventre materno, do nascimento e da ligação íntima entre o momento inicial da
existência e a ação de Deus Criador. « Antes que fosses formado no ventre de
tua mãe, Eu já te conhecia; antes que saísses do seio materno, Eu te
consagrei » (Jr 1, 5): a existência de cada indivíduo, desde as suas origens,
obedece ao desígnio de Deus. Jó, na profundidade da sua dor, detém-se a
contemplar a obra de Deus na miraculosa formação do seu corpo no ventre da mãe,
retirando daí motivo de confiança e exprimindo a certeza da existência de um
projeto divino para a sua vida: « As tuas mãos formaram-me e fizeram-me e, de
repente, vais aniquilar-me? Lembra-Te que me formaste com o barro; far-me-ás,
agora, voltar ao pó? Não me espremeste como o leite e coalhaste como o queijo?
De pele e de carne me revestiste, de ossos e de nervos me consolidaste.
Deste-me
a vida e favoreceste-me; a tua providência conservou o meu espírito » (10,
8-12). Modulações cheias de enlevo adorador pela intervenção de Deus na vida
em formação no ventre materno ressoam também nos Salmos.35 Como pensar que
este maravilhoso processo de germinação da vida possa subtrair-se, por um só
momento, à obra sapiente e amorosa do Criador para ficar abandonado ao arbítrio
do homem? Não o pensa, seguramente, a mãe dos sete irmãos que professa a sua
fé em Deus, princípio e garantia da vida desde a concepção e ao mesmo tempo
fundamento da esperança da nova vida para além da morte: « Não sei como
aparecestes nas minhas entranhas, porque não fui eu quem vos deu a alma nem a
vida e nem fui eu quem ajuntou os vossos membros. Mas o Criador do mundo, autor
do nascimento do homem e criador de todas as coisas, restituir-vos-á, na sua
misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora fizerdes pouco caso de vós
mesmos por amor das suas leis » (2 Mc 7, 22-23).
45. A revelação do Novo Testamento confirma o reconhecimento indiscutível do
valor da vida desde os seus inícios. A exaltação da fecundidade e o
trepidante anseio da vida ressoam nas palavras com que Isabel rejubila pela sua
gravidez: ao Senhor « aprouve retirar a minha ignomínia » (Lc 1, 25). Mas o
valor da pessoa, desde a sua concepção, é celebrado ainda melhor no encontro
da Virgem Maria e Isabel e entre as duas crianças, que trazem no seio. São
precisamente eles, os meninos, a revelarem a chegada da era messiânica: no seu
encontro, começa a agir a força redentora da presença do Filho de Deus no
meio dos homens. « Depressa se manifestam — escreve Santo Ambrósio — os
benefícios da chegada de Maria e da presença do Senhor. (...) Isabel foi a
primeira a escutar a voz, mas João foi o primeiro a pressentir a graça.
Aquela
escutou segundo a ordem da natureza; este exultou em virtude do mistério. Ela
apreendeu a chegada de Maria; este, a do Senhor. A mulher ouviu a voz da mulher;
o menino sentiu a presença do Filho. Aquelas proclamam a graça de Deus, estes
realizam-na interiormente, iniciando no seio de suas mães o mistério de
piedade; e, por um duplo milagre, as mães profetizam sob a inspiração de seus
filhos. O filho exultou de alegria; a mãe ficou cheia do Espírito Santo. A mãe
não se antecipou ao filho; foi este que, uma vez cheio do Espírito Santo, o
comunicou a sua mãe ».36
« Confiei mesmo quando disse: -Sou um homem de todo infeliz- » (Sl 116/115,
10): a vida na velhice e no sofrimento
46. Também no que se refere aos últimos dias da existência, seria anacrônico
esperar da revelação bíblica uma referência expressa à problemática atual
do respeito pelas pessoas idosas e doentes, ou uma explícita condenação das
tentativas de lhes antecipar violentamente o fim: encontramo-nos, de fato,
perante um contexto cultural e religioso que não está pervertido por tais
tentações, mas antes reconhece na sabedoria e experiência do ancião uma
riqueza insubstituível para a família e a sociedade. A velhice goza de prestígio
e é circundada de veneração (cf. 2 Mc 6, 23). O justo não pede para ser
privado da velhice nem do seu peso; antes pelo contrário: « Vós sois a minha
esperança, a minha confiança, Senhor, desde a minha juventude. (...) Agora, na
velhice e na decrepitude, não me abandoneis, ó Deus; para que narre às gerações
a força do vosso braço, o vosso poder a todos os que hão-de vir » (Sl 71/70,
5.18).
O ideal do tempo messiânico é apresentado como aquele em que « não
mais haverá (...) um velho que não complete os seus dias » (Is 65, 20). Mas,
como enfrentar o declínio inevitável da vida, na velhice?Como comportar-se
frente à morte? O crente sabe que a sua vida está nas mãos de Deus: «
Senhor, nas tuas mãos está a minha vida » (cf. Sl 16/15, 5); e d’Ele aceite
também a morte: « Este é o juízo do Senhor sobre toda a humanidade; e porque
quererias reprovar a lei do Altíssimo? » (Sir 41, 4). O homem não é senhor
nem da vida nem da morte; tanto numa como noutra, deve abandonar-se totalmente
à « vontade do Altíssimo », ao seu desígnio de amor. Também no momento da
doença, o homem é chamado a viver a mesma entrega ao Senhor e a renovar a sua
confiança fundamental n-Aquele que « sara todas as enfermidades » (cf. Sl 103/102, 3). Quando toda e qualquer esperança de saúde parece fechar-se para o
homem — a ponto de o levar a gritar: « Os meus dias são como a sombra que
declina, e vou-me secando como o feno » (Sl 102/101, 12) — , mesmo então o
crente está animado pela fé inabalável no poder vivificador de Deus. A doença
não o leva ao desespero nem ao desejo da morte, mas a uma invocação cheia de
esperança: « Confiei mesmo quando disse: -Sou um homem de todo infeliz- »
(Sl 116/115, 10); « Senhor, meu Deus, a vós clamei e fui curado. Senhor,
livrastes a minha alma da mansão dos mortos; destes-me a vida quando já descia
ao túmulo » (Sl 30/29, 3-4).
47. A missão de Jesus, com as numerosas curas realizadas, indica quanto Deus
tem a peito também a vida corporal do homem. « Médico do corpo e do espírito
»,37 Jesus foi mandado pelo Pai para anunciar a boa nova aos pobres e para
curar os de coração despedaçado (cf. Lc 4, 18; Is 61, 1). Depois, ao enviar
os seus discípulos pelo mundo, confia-lhes uma missão na qual a cura dos
doentes acompanha o anúncio do Evangelho: « Pelo caminho, proclamai que o
reino dos Céus está perto. Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai
os leprosos, expulsai os demônios » (Mt 10,7-8; cf.
Mc 6,13; 16,18).
Certamente, a vida do corpo na sua condição terrena não é um absoluto para o
crente, de tal modo que lhe pode ser pedido para a abandonar por um bem
superior; como diz Jesus, « quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem
perder a sua vida por Mim e pelo Evangelho, salvá-la-á » (Mc 8, 35). A este
propósito, o Novo Testamento oferece diversos testemunhos. Jesus não hesita em
sacrificar-Se a Si próprio e, livremente, faz da sua vida uma oferta ao Pai
(cf. Jo 10, 17) e aos seus (cf. Jo 10, 15). Também a morte de João Baptista,
precursor do Salvador, atesta que a existência terrena não é o bem absoluto:
é mais importante a fidelidade à palavra do Senhor, ainda que esta possa pôr
em jogo a vida (cf. Mc 6, 17-29).
E Estevão, ao ser privado da vida temporal
porque testemunha fiel da ressurreição do Senhor, segue os passos do Mestre e
vai ao encontro dos seus lapidadores com as palavras do perdão (cf. At 7,
59-60), abrindo a estrada do exército inumerável dos mártires, venerados pela
Igreja desde o princípio. Todavia, ninguém pode escolher arbitrariamente viver
ou morrer; efetivamente, senhor absoluto de tal decisão é apenas o Criador,
Aquele em quem « vivemos, nos movemos e existimos » (At 17, 28).
« Todos os que a seguirem alcançarão a vida » (Br 4, 1): da Lei do Sinai ao
dom do Espírito
48. A vida traz indelevelmente inscrita nela uma verdade sua. O homem, ao
acolher o dom de Deus, deve comprometer-se a manter a vida nesta verdade, que
lhe é essencial. Desviar-se dela, equivale a condenar-se a si próprio à
insignificância e à infelicidade, com a conseqüência de poder tornar-se também
uma ameaça para a existência dos outros, já que foram rompidos os diques que
garantiam o respeito e a defesa da vida, em qualquer situação. A verdade da
vida é revelada pelo mandamento de Deus. A palavra do Senhor indica
concretamente a direção que a vida deve seguir, para poder respeitar a própria
verdade e salvaguardar a sua dignidade. Não é apenas o mandamento específico
— « não matarás » (Ex 20, 13; Dt 5, 17) — a garantir a proteção da
vida; mas a Lei do Senhor em toda a sua extensão está ao serviço dessa proteção,
porque revela aquela verdade na qual a vida encontra o seu pleno significado. Não
admira, pois, que a Aliança de Deus com o seu povo esteja tão intensamente
ligada à perspectiva da vida, mesmo na sua dimensão corpórea. Naquela, o
mandamento é dado como caminho da vida: « Vê, ofereço-te hoje, de um lado, a
vida e o bem; de outro, a morte e o mal. Recomendo-te hoje que ames o Senhor,
teu Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os seus preceitos, suas leis
e seus decretos. Se assim fizeres, viverás, engrandecer-te-ás e serás abençoado
pelo Senhor, teu Deus, na terra em que vais entrar para a possuir » (Dt 30,
15-16). Não está em questão apenas a terra de Canaã e a existência do povo
de Israel, mas também o mundo de hoje e do futuro e a existência de toda a
humanidade. De fato, não é possível, absolutamente, a vida permanecer autêntica
e plena, quando se afasta do bem; e o bem, por sua vez, está essencialmente
ligado aos mandamentos do Senhor, isto é, à « lei da vida » (Sir 17, 11). O
bem que se tem de realizar, não é imposto à vida como um fardo que pesa sobre
ela, porque a própria razão da vida é precisamente o bem, e a vida é construída
apenas mediante o cumprimento do bem. Portanto, é a Lei no seu todo que
salvaguarda plenamente a vida do homem. Isto explica como é difícil manter-se
fiel ao preceito « não matarás », quando não são observadas as demais «
palavras de vida » (At 7, 38), às quais ele está ligado. Fora deste
horizonte, o mandamento acaba por se tornar uma mera obrigação extrínseca, da
qual bem depressa desejar-se-ão ver os limites e procurar-se-ão as atenuantes
ou as exceções.
Só se nos abrirmos à plenitude da verdade acerca de Deus, do
homem e da história, é que o preceito « não matarás » voltará a
resplandecer como o melhor para o homem em todas as suas dimensões e relações.
Nesta perspectiva, podemos atingir a plenitude da verdade contida na passagem do
Livro do Deuteronômio, retomada por Jesus na resposta à primeira tentação:
« O homem não vive somente de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor »
(8, 3; cf. Mt 4, 4). É escutando a palavra do Senhor que o homem pode viver com
dignidade e justiça; é observando a lei de Deus que o homem pode produzir
frutos de vida e de felicidade: « Todos os que a seguirem alcançarão a vida,
e os que a abandonarem cairão na morte » (Br 4, 1).
49. A história de Israel mostra como é difícil permanecer fiel à lei da
vida, que Deus inscreveu no coração dos homens e entregou no Sinai ao povo da
Aliança. Contra a busca de projetos de vida alternativos ao plano de Deus,
levantam-se de modo particular os Profetas, recordando insistentemente que só o
Senhor é a autêntica fonte da vida. Assim escreve Jeremias: « O meu povo
cometeu um duplo crime: abandonou-Me a Mim, fonte de águas vivas, para cavar
cisternas, cisternas rotas, que não podem reter as águas » (2, 13). Os
Profetas apontam o dedo acusador contra aqueles que desprezam a vida e violam os
direitos das pessoas: « Esmagam como o pó da terra a cabeça do pobre » (Am
2, 7); « mancharam este lugar com o sangue de inocentes » (Jr 19, 4). E a
estes, vem juntar-se o profeta Ezequiel que mais de uma vez verbera a cidade de
Jerusalém, designando-a como « a cidade sanguinária » (22, 2; 24, 6.9), a «
cidade que derramou o sangue no seu seio » (22, 3). Mas, ao mesmo tempo que
denunciam as ofensas contra a vida, os Profetas preocupam-se sobretudo por
suscitar a esperança de um novo princípio de vida, capaz de fundar um renovado
relacionamento com Deus e com os irmãos, entreabrindo possibilidades inéditas
e extraordinárias para compreender e atuar as exigências contidas no Evangelho
da vida. Isso será possível unicamente mediante um dom de Deus, que purifique
e renove: « Derramarei sobre vós uma água pura e sereis purificados; Eu vos
purificarei de todas as manchas e de todos os pecados. Dar-vos-ei um coração
novo e infundirei em vós um espírito novo » (Ez 36, 25-26; cf. Jr 31, 31-34).
Graças a este « coração novo », pode-se compreender e realizar o sentido
mais verdadeiro e profundo da vida: ser um dom que se consuma no dar-se. É a
mensagem luminosa sobre o valor da vida que nos vem da figura do Servo do
Senhor: « Oferecendo a sua vida em sacrifício expiatório, terá uma
posteridade duradoura e viverá longos dias. (...) Livrada a sua alma dos
tormentos, verá a luz » (Is 53, 10.11). Na existência de Jesus de Nazaré, a
Lei teve pleno cumprimento, ao ser dado o coração novo por meio do seu Espírito.
Com efeito, Cristo não revoga a Lei, mas leva-a ao seu pleno cumprimento (cf.Mt
5, 17): a Lei e os Profetas resumem-se na regra-áurea do amor recíproco (cf.
Mt 7, 12). N-Ele, a Lei torna-se definitivamente « evangelho », feliz notícia
do domínio de Deus sobre o mundo, que reconduz toda a existência às suas raízes
e perspectivas originais. É a Nova Lei, « a lei do Espírito que dá vida em
Cristo Jesus » (Rm 8, 2), cuja expressão fundamental, a exemplo do Senhor que
dá a vida pelos próprios amigos (cf. Jo 15, 13), é o dom de si no amor aos
irmãos: « Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos
» (1 Jo 3, 14). É lei de liberdade, alegria e felicidade. « Hão-de olhar
para Aquele que trespassaram » (Jo 19, 37): na árvore da Cruz, cumpre-se o
Evangelho da Vida
50. No final deste capítulo, em que meditamos a mensagem
cristã sobre a vida, quereria deter-me com cada um de vós a contemplar Aquele
que trespassaram e que atrai todos a Si (cf. Jo 19, 37; 12, 32). Levantando os
olhos para « o espetáculo » da cruz (cf. Lc 23,48), poderemos descobrir,
nesta árvore gloriosa, o cumprimento e a plena revelação de todo o Evangelho
da vida. Nas primeiras horas da tarde de Sexta-feira Santa, « as trevas
cobriram toda a terra (...) por o sol se haver eclipsado. O véu do Templo
rasgou-se ao meio » (Lc 23, 44.45). É o símbolo de uma grande perturbação cósmica
e de uma luta atroz das forças do bem contra as do mal, da vida contra a morte.
Também hoje nos encontramos no meio de uma luta dramática entre a « cultura
da morte » e a « cultura da vida ».
Mas o esplendor da Cruz não fica
submerso pelas trevas; pelo contrário, aquela desenha-se ainda mais clara e
luminosa, revelando-se como o centro, o sentido e o fim da história inteira e
de toda a vida humana. Jesus é pregado na cruz e levantado da terra. Vive o
momento da sua máxima « impotência », e a sua vida parece totalmente
abandonada aos insultos dos seus adversários e às mãos dos seus carrascos: é
humilhado, escarnecido, ultrajado (cf. Mc 15, 24-36). E contudo, precisamente
diante de tudo isso e « ao vê-Lo expirar daquela maneira », o centurião
romano exclama: « Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus! » (Mc 15,
39). Revela-se assim, no momento da sua extrema debilidade, a identidade do
Filho de Deus: na Cruz, manifesta-se a sua glória! Com a sua morte, Jesus
ilumina o sentido da vida e da morte de todo o ser humano. Antes de morrer,
Jesus reza ao Pai, pedindo o perdão para os seus perseguidores (cf. Lc 23, 34),
e ao malfeitor, que Lhe pede para Se recordar dele no seu reino, responde: « Em
verdade te digo: hoje estarás Comigo no Paraíso » (Lc 23, 43). Depois da sua
morte, « abriram-se os túmulos e muitos corpos de santos que estavam mortos,
ressuscitaram » (Mt 27, 52). A salvação, operada por Jesus, é doação de
vida e de ressurreição. Ao longo da sua existência, Jesus tinha concedido a
salvação, curando e fazendo o bem a todos (cf. At 10, 38). Mas os milagres, as
curas e as próprias ressurreições eram sinal de outra salvação que consiste
no perdão dos pecados, ou seja, na libertação do homem do mal mais profundo,
e na sua elevação à própria vida de Deus.
Na Cruz, renova-se e realiza-se,
em sua perfeição plena e definitiva, o prodígio da serpente erguida por Moisés
no deserto (cf. Jo 3, 14-15; Nm 21, 8-9). Também hoje, voltando o olhar para
Aquele que foi trespassado, cada homem com a sua existência ameaçada recobra a
esperança segura de encontrar libertação e redenção.
51. Mas há ainda outro acontecimento específico que atrai o meu olhar e merece
compenetrada meditação. « Quando Jesus tomou o vinagre, exclamou: -Tudo está
consumado-. E inclinando a cabeça, entregou o espírito » (Jo 19, 30). E o
soldado romano « perfurou-Lhe o lado com uma lança e logo saiu sangue e água
» (Jo 19, 34).
Tudo chegou já ao seu pleno cumprimento. O « entregar o espírito
» exprime certamente a morte de Jesus, semelhante à de qualquer outro ser
humano, mas parece aludir também ao « dom do Espírito », com que Ele nos
resgata da morte e desperta para uma vida nova. A própria vida de Deus é
participada ao homem. Mediante os sacramentos da Igreja — cujo símbolo são o
sangue e a água, que brotam do lado de Cristo —, aquela vida é
incessantemente comunicada aos filhos de Deus, constituídos como povo da nova
aliança. Da Cruz, fonte de vida, nasce e se propaga o « povo da vida ». Deste
modo, a contemplação da Cruz leva-nos às raízes mais profundas daquilo que
sucedeu. Jesus que, ao entrar no mundo, tinha dito: « Eis que venho, ó Deus,
para fazer a tua vontade » (cf. Hb 10, 9), fez-Se em tudo obediente ao Pai, e
tendo « amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim » (Jo 13, 1),
entregando-Se inteiramente por eles. Ele que não « veio para ser servido, mas
para servir e dar a vida em resgate por todos » (Mc 10, 45), chega ao vértice
do amor na Cruz: « Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos
seus amigos » (Jo 15, 13). E Ele morreu por nós, quando éramos ainda
pecadores (cf. Rm 5, 8). Deste modo, Cristo proclama que a vida atinge o seu
centro, sentido e plenitude quando é doada. Chegada a este ponto, a meditação
faz-se louvor e agradecimento e, ao mesmo tempo, estimula-nos a imitar Jesus e a
seguir os seus passos (cf. 1 Pd 2, 21). Também nós somos chamados a dar a
nossa vida pelos irmãos, realizando assim, na sua verdade mais plena, o sentido
e o destino da nossa existência. Podê-lo-emos fazer porque Vós, Senhor, nos
destes o exemplo e comunicastes a força do Espírito. Podê-lo-emos fazer se
cada dia, Convosco e como Vós, formos obedientes ao Pai e fizermos a sua
vontade. Concedei-nos, pois, ouvir com coração dócil e generoso toda a
palavra que sai da boca de Deus: aprenderemos assim não apenas a « não matar
» a vida do homem, mas também a sabê-la venerar, amar e promover.
CAPÍTULO III
NÃO MATARÁS: A LEI SANTA DE DEUS
« Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos » (Mt 19, 17):
Evangelho e mandamento
52. « Aproximou-se d'Ele um jovem e disse- -Lhe: -Que hei-de fazer de bom para
alcançar a vida eterna?- » (Mt 19, 16). Jesus respondeu: « Se queres entrar
na vida eterna, cumpre os mandamentos » (Mt 19, 17). O Mestre fala da vida
eterna, isto é, da participação na própria vida de Deus. A esta vida,
chega-se através da observância dos mandamentos, incluindo naturalmente aquele
que diz « não matarás ». Este é precisamente o primeiro preceito do Decálogo
que Jesus recorda ao jovem, quando este Lhe solicita os mandamentos que terá de
cumprir: « Retorquiu Jesus: -Não matarás; não cometerás adultério; não
roubarás...- » (Mt 19, 18). O mandamento de Deus nunca está separado do seu
amor: é sempre um dom para o crescimento e a alegria do homem. Como tal,
constitui um aspecto essencial e um elemento inalienável do Evangelho, mais, o
próprio mandamento se configura como « evangelho », ou seja, uma boa e feliz
notícia. Também o Evangelho da vida é um grande dom de Deus e simultaneamente
uma exigente tarefa para o homem. Aquele suscita assombro e gratidão na pessoa
livre e pede para ser acolhido, guardado e valorizado com vivo sentimento de
responsabilidade: dando-lhe a vida, Deus exige do homem que a ame, respeite e
promova. Deste modo, o dom faz-se mandamento, e o mandamento é em si mesmo um
dom.
Imagem viva de Deus, o homem foi querido pelo seu Criador como rei e
senhor. « Deus fez o homem — escreve S. Gregório de Nissa — de forma tal
que pudesse desempenhar a sua função de rei da terra. (...) O homem foi criado
à imagem d'Aquele que governa o universo. Tudo indica que, desde o princípio,
a sua natureza está marcada pela realeza. (...) Assim a natureza humana, criada
para ser senhora das outras criaturas, à semelhança do Soberano do universo,
foi estabelecida como sua imagem viva, participante da dignidade do divino Arquétipo
».38 Chamado para ser fecundo e multiplicar-se, sujeitar a terra e dominar
sobre os seres que lhe são inferiores (cf. Gn 1, 28), o homem é rei e senhor não
apenas das coisas, mas também e primariamente de si mesmo 39 e, em certo
sentido, da vida que lhe é dada e que ele pode transmitir por meio da geração
cumprida no amor e no respeito do desígnio de Deus. No entanto, o seu domínio
não é absoluto, mas ministerial: é reflexo concreto do domínio único e
infinito de Deus. Por isso, o homem deve vivê-lo com sabedoria e amor,
participando da sabedoria e do amor incomensurável de Deus. E isto verifica-se
pela obediência à sua Lei santa: uma obediência livre e alegre (cf. Sl 119/118) que nasce e se alimenta da certeza de que os preceitos do Senhor são
dons de graça, confiados ao homem sempre e só para o seu bem, para a defesa da
sua dignidade pessoal e para a prossecução da sua felicidade. Aquilo que foi
dito no referente às coisas, vale ainda mais agora no contexto da vida: o homem
não é senhor absoluto e árbitro incontestável, mas — e nisso está a sua
grandeza incomparável — é « ministro do desígnio de Deus ».40 A vida é
confiada ao homem como um tesouro que não pode malbaratar, como um talento que
há-de pôr a render. Dela terá de prestar contas ao seu Senhor (cf. Mt 25,
14-30; Lc 19, 12-27).
« Ao homem, pedirei contas da vida do homem » (Gn 9, 5): a vida humana é
sagrada e inviolável
53. « A vida humana é sagrada, porque, desde a sua origem, supõe -a ação
criadora de Deus- e mantém-se para sempre numa relação especial com o
Criador, seu único fim. Só Deus é senhor da vida, desde o princípio até ao
fim: ninguém, em circunstância alguma, pode reivindicar o direito de destruir
diretamente um ser humano inocente ».41 Com estas palavras, a Instrução Donum
vitae expõe o conteúdo central da revelação de Deus sobre a sacralidade e
inviolabilidade da vida humana. De fato, a Sagrada Escritura apresenta ao homem
o preceito « não matarás » (Ex 20, 13; Dt 5, 17) como mandamento divino.
Como já sublinhei, encontra-se no Decálogo, no coração da Aliança, que o
Senhor concluiu com o povo eleito; mas estava já contido na aliança primordial
de Deus com a humanidade, após o castigo purificador do dilúvio, que fora
provocado pelo incremento do pecado e da violência (cf. Gn 9, 5-6). Deus
proclama-Se Senhor absoluto da vida do homem, formado à sua imagem e semelhança
(cf. Gn 1, 26-28).
A vida humana possui, portanto, um caráter sagrado e inviolável,
no qual se reflete a própria inviolabilidade do Criador. Por isso mesmo, será
Deus que Se fará juiz severo de qualquer violação do mandamento « não matarás
», colocado na base de toda a convivência social. Deus é o go-el, ou seja, o
defensor do inocente (cf. Gn 4, 9-15; Is 41, 14 ; Jr 50, 34; Sl 19/18, 15). Deus
comprova, assim também, que não Se alegra com a perdição dos vivos (cf. Sb
1, 13). Com esta, apenas Satanás se pode alegrar: foi pela sua inveja que a
morte entrou no mundo (cf. Sb 2, 24). « Assassino desde o princípio », o
diabo é também « mentiroso e pai da mentira » (Jo 8, 44 ): enganando o homem,
levou-o para metas de pecado e de morte, apresentadas como objetivos e frutos de
vida.
54. O preceito « não matarás », explicitamente, tem um forte conteúdo
negativo: indica o limite extremo que nunca poderá ser transposto.
Implicitamente, porém, induz a uma atitude positiva de respeito absoluto pela
vida, levando a promovê-la e a crescer seguindo a estrada do amor que se dá,
acolhe e serve. Também o povo da Aliança, ainda que lentamente e não sem
contradições, experimentou um amadurecimento progressivo nessa direção,
preparando-se assim para a grande proclamação de Jesus: o amor do próximo é
um mandamento semelhante ao do amor de Deus; « destes dois mandamentos depende
toda a Lei e os Profetas » (Mt 22, 36-40). « Com efeito, (...) não matarás
(...) e qualquer dos outros mandamentos — sublinha S. Paulo — resumem-se
nestas palavras: -Amarás ao próximo como a ti mesmo- » (Rm 13, 9; cf. Gl 5,
14). Assumido e levado à perfeição na Nova Lei, o preceito « não matarás
» permanece como condição indispensável para poder « entrar na vida » (cf.
Mt 19, 16-19). E, nesta mesma perspectiva, aponta decisivamente a palavra do apóstolo
João: « Todo aquele que odeia o seu irmão é homicida e sabeis que nenhum
homicida tem a vida eterna permanentemente em si » (1 Jo 3, 15). Desde os seus
primórdios, a Tradição viva da Igreja — como testemunha a Didaké, o
escrito cristão extra-bíblico mais antigo — reafirmou de modo categórico o
mandamento « não matarás »: « Há dois caminhos, um da vida e o outro da
morte; mas entre os dois existe uma grande diferença. (...) Segundo o preceito
da doutrina: não matarás; (...) não matarás o embrião por meio do aborto,
nem farás que morra o recém-nascido. (...) Este é o caminho da morte: (...) não
têm compaixão do pobre, não sofrem com o enfermo, nem reconhecem o seu
Criador; assassinam os seus filhos e pelo aborto fazem perecer criaturas de
Deus; desprezam o necessitado, oprimem o atribulado, são defensores dos ricos e
juízes injustos dos pobres; estão cheios de todo o pecado. Possais, filhos,
permanecer sempre longe de todas estas culpas! ».42 Ao longo dos tempos, a
Tradição da Igreja ensinou sempre e unanimemente o valor absoluto e permanente
do mandamento « não matarás ».
É sabido que, nos primeiros séculos, o
homicídio se contava entre os três pecados mais graves — juntamente com a
apostasia e o adultério —, e exigia-se uma penitência pública
particularmente onerosa e demorada, antes de ser concedido ao homicida
arrependido o perdão e a readmissão na comunidade eclesial.
55. Não há de que se maravilhar! Matar o ser humano, no qual está presente a
imagem de Deus, é pecado de particular gravidade.Só Deus é dono da vida! No
entanto, frente aos múltiplos casos, freqüentemente dramáticos, que a vida
individual e social apresenta, a reflexão dos crentes procurou sempre alcançar
um conhecimento mais completo e profundo daquilo que o mandamento de Deus proíbe
e prescreve.43 Com efeito, há situações onde os valores propostos pela Lei de
Deus parecem formar um verdadeiro paradoxo.
É o caso, por exemplo, da legítima
defesa, onde o direito de proteger a própria vida e o dever de não lesar a
alheia se revelam, na prática, dificilmente conciliáveis. Sem dúvida que o
valor intrínseco da vida e o dever de dedicar um amor a si mesmo não menor que
aos outros, fundam um verdadeiro direito à própria defesa. O próprio preceito
que manda amar os outros, enunciado no Antigo Testamento e confirmado por Jesus,
supõe o amor a si mesmo como termo de comparação: « Amarás o teu próximo
como a ti mesmo » (Mc 12, 31). Portanto, ninguém poderia renunciar ao direito
de se defender por carência de amor à vida ou a si mesmo, mas apenas em
virtude de um amor heróico que, na linha do espírito das bem-aventuranças
evangélicas (cf. Mt 5, 38- 48), aprofunde o amor a si mesmo, transfigurando-o
naquela oblação radical cujo exemplo mais sublime é o próprio Senhor Jesus.
Por outro lado, « a legítima defesa pode ser, não somente um direito, mas um
dever grave, para aquele que é responsável pela vida de outrem, do bem comum
da família ou da sociedade ».44 Acontece, infelizmente, que a necessidade de
colocar o agressor em condições de não molestar implique, às vezes, a sua
eliminação. Nesta hipótese, o desfecho mortal há-de ser atribuído ao próprio
agressor que a tal se expôs com a sua ação, inclusive no caso em que ele não
fosse moralmente responsável por falta do uso da razão.45
56. Nesta linha, coloca-se o problema da pena de morte, à volta do qual se
registra, tanto na Igreja como na sociedade, a tendência crescente para pedir
uma aplicação muito limitada, ou melhor, a total abolição da mesma. O
problema há-de ser enquadrado na perspectiva de uma justiça penal, que seja
cada vez mais conforme com a dignidade do homem e portanto, em última análise,
com o desígnio de Deus para o homem e a sociedade. Na verdade, a pena, que a
sociedade inflige, tem « como primeiro efeito o de compensar a desordem
introduzida pela falta ».46 A autoridade pública deve fazer justiça pela
violação dos direitos pessoais e sociais, impondo ao réu uma adequada expiação
do crime como condição para ser readmitido no exercício da própria
liberdade. Deste modo, a autoridade há-de procurar alcançar o objetivo de
defender a ordem pública e a segurança das pessoas, não deixando, contudo, de
oferecer estímulo e ajuda ao próprio réu para se corrigir e redimir.47 Claro
está que, para bem conseguir todos estes fins, a medida e a qualidade da pena hão-de
ser atentamente ponderadas e decididas, não se devendo chegar à medida extrema
da execução do réu senão em casos de absoluta necessidade, ou seja, quando a
defesa da sociedade não fosse possível de outro modo.
Mas, hoje, graças à
organização cada vez mais adequada da instituição penal, esses casos são já
muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes. Em todo o caso, permanece
válido o princípio indicado pelo novo Catecismo da Igreja Católica: « na
medida em que outros processos, que não a pena de morte e as operações
militares, bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para
proteger a paz pública, tais processos não sangrentos devem preferir-se, por
serem proporcionados e mais conformes com o fim em vista e a dignidade humana ».48
57. Se se deve mostrar uma atenção assim tão grande por qualquer vida, mesmo
pela do réu e a do injusto agressor, o mandamento « não matarás » tem valor
absoluto quando se refere à pessoa inocente.
E mais ainda, quando se trata de
um ser frágil e inerme que encontra a sua defesa radical do arbítrio e da
prepotência alheia, unicamente na força absoluta do mandamento de Deus. De
fato, a inviolabilidade absoluta da vida humana inocente é uma verdade moral
explicitamente ensinada na Sagrada Escritura, constantemente mantida na Tradição
da Igreja e unanimemente proposta pelo seu Magistério. Tal unanimidade é fruto
evidente daquele « sentido sobrenatural da fé » que, suscitado e apoiado pelo
Espírito Santo, preserva do erro o Povo de Deus, quando « manifesta consenso
universal em matéria de fé e costumes ».49 Face ao progressivo
enfraquecimento, nas consciências e na sociedade, da percepção da absoluta e
grave ilicitude moral da eliminação direta de qualquer vida humana inocente,
sobretudo no seu início e no seu termo, o Magistério da Igreja intensificou as
suas intervenções em defesa da sacralidade e inviolabilidade da vida humana.
Ao Magistério pontifício, particularmente insistente, sempre se uniu o Magistério
episcopal, com numerosos e amplos documentos doutrinais e pastorais emanados
quer pelas Conferências Episcopais, quer pelos Bispos individualmente.
Não
faltou sequer, forte e incisiva na sua brevidade, a intervenção do Concílio
Vaticano II.50 Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus
Sucessores, em comunhão com os Bispos da Igreja Católica,confirmo que a morte
direta e voluntária de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral. Esta
doutrina, fundada naquela lei não-escrita que todo o homem, pela luz da razão,
encontra no próprio coração (cf. Rm 2, 14-15), é confirmada pela Sagrada
Escritura, transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério
ordinário e universal.51 A decisão deliberada de privar um ser humano inocente
da sua vida é sempre má do ponto de vista moral, e nunca pode ser lícita nem
como fim, nem como meio para um fim bom. É, de fato, uma grave desobediência
à lei moral, antes ao próprio Deus, autor e garante desta; contradiz as
virtudes fundamentais da justiça e da caridade. « Nada e ninguém pode
autorizar que se dê a morte a um ser humano inocente seja ele feto ou embrião,
criança ou adulto, velho, doente incurável ou agonizante.
E também a ninguém
é permitido requerer este gesto homicida para si ou para outrem confiado à sua
responsabilidade, nem sequer consenti-lo explícita ou implicitamente. Não há
autoridade alguma que o possa legitimamente impor ou permitir ».52 No referente
ao direito à vida, cada ser humano inocente é absolutamente igual a todos os
demais. Esta igualdade é a base de todo o relacionamento social autêntico, o
qual, para o ser verdadeiramente, não pode deixar de se fundar sobre a verdade
e a justiça, reconhecendo e tutelando cada homem e cada mulher como pessoa, e não
como coisa de que se possa dispor. Diante da norma moral que proíbe a eliminação
direta de um ser humano inocente, « não existem privilégios, nem exceções
para ninguém. Ser o dono do mundo ou o último -miserável- sobre a face da
terra, não faz diferença alguma: perante as exigências morais, todos somos
absolutamente iguais ».53
« Vossos olhos contemplaram-me ainda em embrião » (Sl 139/138,16): o crime
abominável do aborto
58. Dentre todos os crimes que o homem pode realizar contra a vida, o aborto
provocado apresenta características que o tornam particularmente grave e abjurável.
O Concílio Vaticano II define-o, juntamente com o infanticídio, « crime
abominável ».54 Mas hoje, a percepção da sua gravidade vai-se obscurecendo
progressivamente em muitas consciências. A aceitação do aborto na
mentalidade, nos costumes e na própria lei, é sinal eloqüente de uma perigosíssima
crise do sentido moral que se torna cada vez mais incapaz de distinguir o bem do
mal, mesmo quando está em jogo o direito fundamental à vida. Diante de tão
grave situação, impõe-se mais que nunca a coragem de olhar frontalmente a
verdade e chamar as coisas pelo seu nome, sem ceder a compromissos com o que nos
é mais cômodo nem à tentação de auto-engano.
A propósito disto, ressoa
categórica a censura do Profeta: « Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem,
mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas » (Is 5, 20). Precisamente
no caso do aborto, verifica-se a difusão de uma terminologia ambígua, como «
interrupção da gravidez », que tende a esconder a verdadeira natureza dele e
a atenuar a sua gravidade na opinião pública. Talvez este fenômeno lingüístico
seja já, em si mesmo, sintoma de um mal-estar das consciências.
Mas nenhuma
palavra basta para alterar a realidade das coisas: o aborto provocado é a morte
deliberada e direta, independentemente da forma como venha realizada, de um ser
humano na fase inicial da sua existência, que vai da concepção ao nascimento.
A gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se
reconhece que se trata de um homicídio e, particularmente, quando se consideram
as circunstâncias específicas que o qualificam. A pessoa eliminada é um ser
humano que começa a desabrochar para a vida, isto é, o que de mais inocente,
em absoluto, se possa imaginar: nunca poderia ser considerado um agressor, menos
ainda um injusto agressor! É frágil, inerme, e numa medida tal que o deixa
privado inclusive daquela forma mínima de defesa constituída pela força
suplicante dos gemidos e do choro do recém-nascido. Está totalmente entregue
à proteção e aos cuidados daquela que o traz no seio.
E todavia, às vezes,
é precisamente ela, a mãe, quem decide e pede a sua eliminação, ou até a
provoca. É verdade que, muitas vezes, a opção de abortar reveste para a mãe
um caráter dramático e doloroso: a decisão de se desfazer do fruto concebido
não é tomada por razões puramente egoístas ou de comodidade, mas porque se
quereriam salvaguardar alguns bens importantes como a própria saúde ou um nível
de vida digno para os outros membros da família. Às vezes, temem-se para o
nascituro condições de existência tais que levam a pensar que seria melhor
para ele não nascer. Mas estas e outras razões semelhantes, por mais graves e
dramáticas que sejam, nunca podem justificar a supressão deliberada de um ser
humano inocente.
59. A decidirem a morte da criança ainda não nascida, a par da mãe, aparecem,
com freqüência, outras pessoas. Antes de mais, culpado pode ser o pai da criança,
não apenas quando claramente constringe a mulher ao aborto, mas também quando
favorece indiretamente tal decisão ao deixá-la sozinha com os problemas de uma
gravidez: 55 desse modo, a família fica mortalmente ferida e profanada na sua
natureza de comunidade de amor e na sua vocação para ser « santuário da vida
». Nem se podem calar as solicitações que, às vezes, provêm do âmbito
familiar mais alargado e dos amigos. A mulher, não raro, é sujeita a pressões
tão fortes que se sente psicologicamente constrangida a ceder ao aborto: não há
dúvida que, neste caso, a responsabilidade moral pesa particularmente sobre
aqueles que direta ou indiretamente a forçaram a abortar. Responsáveis são
também os médicos e restantes profissionais da saúde, sempre que põem ao
serviço da morte a competência adquirida para promover a vida.
Mas a
responsabilidade cai ainda sobre os legisladores que promoveram e aprovaram leis
abortistas, e sobre os administradores das estruturas clínicas onde se praticam
os abortos, na medida em que a sua execução deles dependa. Uma
responsabilidade geral, mas não menos grave, cabe a todos aqueles que
favoreceram a difusão de uma mentalidade de permissivismo sexual e de
menosprezo pela maternidade, como também àqueles que deveriam ter assegurado
— e não o fizeram — válidas políticas familiares e sociais de apoio às
famílias, especialmente às mais numerosas ou com particulares dificuldades
econômicas e educativas.
Não se pode subestimar, enfim, a vasta rede de
cumplicidades, nela incluindo instituições internacionais, fundações e
associações, que se batem sistematicamente pela legalização e difusão do
aborto no mundo. Neste sentido, o aborto ultrapassa a responsabilidade dos indivíduos
e o dano que lhes é causado, para assumir uma dimensão fortemente social: é
uma ferida gravíssima infligida à sociedade e à sua cultura por aqueles que
deveriam ser os seus construtores e defensores. Como escrevi na Carta às Famílias,
« encontramo-nos defronte a uma enorme ameaça contra a vida, não apenas dos
simples indivíduos, mas também de toda a civilização ».56 Achamo-nos
perante algo que bem se pode definir uma « estrutura de pecado » contra a vida
humana ainda não nascida. 60. Alguns tentam justificar o aborto, defendendo que
o fruto da concepção, pelo menos até um certo número de dias, não pode
ainda ser considerado uma vida humana pessoal.
Na realidade, porém, « a partir
do momento em que o óvulo é fecundado, inaugura-se uma nova vida que não é a
do pai nem a da mãe, mas sim a de um novo ser humano que se desenvolve por
conta própria. Nunca mais se tornaria humana, se não o fosse já desde então.
A esta evidência de sempre (...) a ciência genética moderna fornece preciosas
confirmações. Demonstrou que, desde o primeiro instante, se encontra fixado o
programa daquilo que será este ser vivo: uma pessoa, esta pessoa individual,
com as suas notas características já bem determinadas. Desde a fecundação,
tem início a aventura de uma vida humana, cujas grandes capacidades, já
presentes cada uma delas, apenas exigem tempo para se organizar e encontrar
prontas a agir ».57 Não podendo a presença de uma alma espiritual ser
assinalada através da observação de qualquer dado experimental, são as próprias
conclusões da ciência sobre o embrião humano a fornecer « uma indicação
valiosa para discernir racionalmente uma presença pessoal já a partir desta
primeira aparição de uma vida humana: como poderia um indivíduo humano não
ser uma pessoa humana? ».58 Aliás, o valor em jogo é tal que, sob o perfil
moral, bastaria a simples probabilidade de encontrar-se em presença de uma
pessoa para se justificar a mais categórica proibição de qualquer intervenção
tendente a eliminar o embrião humano.
Por isso mesmo, independentemente dos
debates científicos e mesmo das afirmações filosóficas com os quais o Magistério
não se empenhou expressamente, a Igreja sempre ensinou — e ensina — que tem
de ser garantido ao fruto da geração humana, desde o primeiro instante da sua
existência, o respeito incondicional que é moralmente devido ao ser humano na
sua totalidade e unidade corporal e espiritual: « O ser humano deve ser
respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde
esse mesmo momento, devem-lhe ser reconhecidos os direitos da pessoa, entre os
quais e primeiro de todos, o direito inviolável de cada ser humano inocente à
vida ».59
61. Os textos da Sagrada Escritura, que nunca falam do aborto voluntário e, por
conseguinte, também não apresentam condenações diretas e específicas do
mesmo, mostram pelo ser humano no seio materno uma consideração tal que exige,
como lógica conseqüência, que se estenda também a ele o mandamento de Deus:
« não matarás ». A vida humana é sagrada e inviolável em cada momento da
sua existência, inclusive na fase inicial que precede o nascimento. Desde o
seio materno, o homem pertence a Deus que tudo perscruta e conhece, que o forma
e plasma com suas mãos, que o vê quando ainda é um pequeno embrião informe,
e que nele entrevê o adulto de amanhã, cujos dias estão todos contados e cuja
vocação está já escrita no « livro da vida » (cf. Sl 139/138, 1.13-16).
Quando está ainda no seio materno — como testemunham numerosos textos bíblicos
60 — já o homem é objeto muito pessoal da amorosa e paterna providência de
Deus. A Tradição cristã — como justamente se realça na Declaração sobre
esta matéria, emanada pela Congregação para a Doutrina da Fé 61 — é clara
e unânime, desde as suas origens até aos nossos dias, em classificar o aborto
como desordem moral particularmente grave.
A comunidade cristã, desde o seu
primeiro confronto com o mundo greco-romano onde se praticava amplamente o
aborto e o infanticídio, opôs-se radicalmente, com a sua doutrina e a sua
praxe, aos costumes generalizados naquela sociedade, como o demonstra a já
citada Didaké.62 Entre os escritores eclesiásticos da área lingüística
grega, Atenágoras recorda que os cristãos consideram homicidas as mulheres que
recorrem a produtos abortivos, porque os filhos, apesar de estarem ainda no seio
da mãe, « são já objeto dos cuidados da Providência divina ».63 Entre os
latinos, Tertuliano afirma: « É um homicídio premeditado impedir de nascer;
pouco importa que se suprima a alma já nascida ou que se faça desaparecer
durante o tempo até ao nascer.
É já um homem aquele que o será ».64 Ao
longo da sua história já bimilenária, esta mesma doutrina foi constantemente
ensinada pelos Padres da Igreja, pelos seus Pastores e Doutores. Mesmo as
discussões de caráter científico e filosófico acerca do momento preciso da
infusão da alma espiritual não incluíram nunca a mínima hesitação quanto
à condenação moral do aborto.
62. O Magistério pontifício mais recente reafirmou, com grande vigor, esta
doutrina comum. Em particular Pio XI, na encíclica Casti connubii rejeitou as
alegadas justificações do aborto; 65 Pio XII excluiu todo o aborto direto,
isto é, qualquer ato que vise diretamente destruir a vida humana ainda não
nascida, « quer tal destruição seja pretendida como fim ou apenas como meio
para o fim »; 66 João XXIII corroborou que a vida humana é sagrada, porque «
desde o seu despontar empenha diretamente a ação criadora de Deus ».67 O Concílio
Vaticano II, como já foi recordado, condenou o aborto com grande severidade: «
A vida deve, pois, ser salvaguardada com extrema solicitude, desde o primeiro
momento da concepção; o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis ».
68
A disciplina canônica da Igreja, desde os primeiros séculos, puniu com sanções
penais aqueles que se manchavam com a culpa do aborto, e tal praxe, com penas
mais ou menos graves, foi confirmada nos sucessivos períodos históricos. O Código
de Direito Canônico de 1917, para o aborto, prescrevia a pena de excomunhão.69
Também a legislação canônica, há pouco renovada, continua nesta linha
quando determina que « quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em
excomunhão latae sententiae »,70 isto é, automática.
A excomunhão recai
sobre todos aqueles que cometem este crime com conhecimento da pena, incluindo
também cúmplices sem cujo contributo o aborto não se teria realizado: 71 com
uma sanção assim reiterada, a Igreja aponta este crime como um dos mais graves
e perigosos, incitando, deste modo, quem o comete a ingressar diligentemente
pela estrada da conversão. Na Igreja, de fato, a finalidade da pena de excomunhão
é tornar plenamente consciente da gravidade de um determinado pecado e, conseqüentemente,
favorecer a adequada conversão e penitência. Frente a semelhante unanimidade
na tradição doutrinal e disciplinar da Igreja, Paulo VI pôde declarar que tal
ensinamento não conheceu mudança e é imutável.72 Portanto, com a autoridade
que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos
— que de várias e repetidas formas condenaram o aborto e que, na consulta
referida anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo, afirmaram unânime
consenso sobre esta doutrina — declaro que o aborto direto, isto é, querido
como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto morte
deliberada de um ser humano inocente. Tal doutrina está fundada sobre a lei
natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da
Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal.73 Nenhuma circunstância,
nenhum fim, nenhuma lei no mundo poderá jamais tornar lícito um ato que é
intrinsecamente ilícito, porque contrário à Lei de Deus, inscrita no coração
de cada homem, reconhecível pela própria razão, e proclamada pela Igreja.
63. A avaliação moral do aborto deve aplicar-se também às recentes formas de
intervenção sobre embriões humanos, que, não obstante visarem objetivos em
si legítimos, implicam inevitavelmente a sua morte. É o caso da experimentação
sobre embriões, em crescente expansão no campo da pesquisa biomédica e
legalmente admitida em alguns países. Se « devem ser consideradas lícitas as
intervenções no embrião humano, sob a condição de que respeitem a vida e a
integridade do embrião, não comportem para ele riscos desproporcionados, e
sejam orientadas para a sua cura, para a melhoria das suas condições de saúde
ou para a sua sobrevivência individual »,74 impõe-se, pelo contrário,
afirmar que o uso de embriões ou de fetos humanos como objeto de experimentação
constitui um crime contra a sua dignidade de seres humanos, que têm direito ao
mesmo respeito devido à criança já nascida e a qualquer pessoa.75 A mesma
condenação moral vale para o sistema que desfruta os embriões e os fetos
humanos ainda vivos — às vezes « produzidos » propositadamente para este
fim através da fecundação in vitro — seja como « material biológico » à
disposição, seja como fornecedores de órgãos ou de tecidos para transplante
no tratamento de algumas doenças.
Na realidade, o assassínio de criaturas
humanas inocentes, ainda que com vantagem para outras, constitui um ato
absolutamente inaceitável. Especial atenção há-de ser reservada à avaliação
moral das técnicas de diagnose pré-natal, que permitem individuar precocemente
eventuais anomalias do nascituro. Com efeito, devido à complexidade dessas técnicas,
a avaliação em causa deve fazer-se mais cuidadosa e articuladamente. Quando
estão isentas de riscos desproporcionados para a criança e para a mãe, e se
destinam a tornar possível uma terapia precoce ou ainda a favorecer uma serena
e consciente aceitação do nascituro, estas técnicas são moralmente lícitas.
Mas, dado que as possibilidade de cura antes do nascimento são hoje ainda
reduzidas, acontece bastantes vezes que essas técnicas são postas ao serviço
de uma mentalidade eugenista que aceita o aborto seletivo, para impedir o
nascimento de crianças afetadas por tipos vários de anomalias. Semelhante
mentalidade é ignominiosa e absolutamente reprovável, porque pretende medir o
valor de uma vida humana apenas segundo parâmetros de « normalidade » e de
bem-estar físico, abrindo assim a estrada à legitimação do infanticídio e
da eutanásia.
Na realidade, porém, a própria coragem e serenidade com que
muitos irmãos nossos, afetados por graves deficiências, conduzem a sua existência
quando são aceites e amados por nós, constituem um testemunho particularmente
eficaz dos valores autênticos que qualificam a vida e a tornam, mesmo em condições
difíceis, preciosa para o próprio e para os outros. A Igreja sente-se solidária
com os cônjuges que, com grande ansiedade e sofrimento, aceitam acolher os seus
filhos gravemente deficientes, tal como se sente grata a todas as famílias que,
pela adoção, acolhem os que são abandonados pelos seus pais por causa de
limitações ou doenças. « Só Eu é que dou a vida e dou a morte » (Dt 32,
39): o drama da eutanásia
64. No outro topo da existência, o homem encontra-se diante do mistério da
morte. Hoje, na seqüência dos progressos da medicina e num contexto cultural
freqüentemente fechado à transcendência, a experiência do morrer
apresenta-se com algumas características novas. Com efeito, quando prevalece a
tendência para apreciar a vida só na medida em que proporciona prazer e
bem-estar, o sofrimento aparece como um contratempo insuportável, de que é
preciso libertar-se a todo o custo.
A morte, considerada como « absurda »
quando interrompe inesperadamente uma vida ainda aberta para um futuro rico de
possíveis experiências interessantes, torna-se, pelo contrário, uma «
libertação reivindicada », quando a existência é tida como já privada de
sentido porque mergulhada na dor e inexoravelmente votada a um sofrimento sempre
mais intenso. Além disso, recusando ou esquecendo o seu relacionamento
fundamental com Deus, o homem pensa que é critério e norma de si mesmo e julga
que tem inclusive o direito de pedir à sociedade que lhe garanta possibilidades
e modos de decidir da própria vida com plena e total autonomia. Em particular,
o homem que vive nos países desenvolvidos é que assim se comporta: a tal se
sente impelido, entre outras coisas, pelos contínuos progressos da medicina e
das suas técnicas cada vez mais avançadas. Por meio de sistemas e aparelhagens
extremamente sofisticadas, hoje a ciência e a prática médica são capazes de
resolver casos anteriormente insolúveis e de aliviar ou eliminar a dor, como
também de sustentar e prolongar a vida até em situações de debilidade
extrema, de reanimar artificialmente pessoas cujas funções biológicas
elementares sofreram danos imprevistos, de intervir para tornar disponíveis órgãos
para transplante.
Num tal contexto, torna-se cada vez mais forte a tentação da
eutanásia, isto é, de apoderar-se da morte, provocando-a antes do tempo e,
deste modo, pondo fim « docemente » à vida própria ou alheia. Na realidade,
aquilo que poderia parecer lógico e humano, quando visto em profundidade,
apresenta-se absurdo e desumano. Estamos aqui perante um dos sintomas mais
alarmantes da « cultura de morte » que avança sobretudo nas sociedades do
bem-estar, caracterizadas por uma mentalidade eficientista que faz aparecer
demasiadamente gravoso e insuportável o número crescente das pessoas idosas e
debilitadas. Com muita freqüência, estas acabam por ser isoladas da família e
da sociedade, organizada quase exclusivamente sobre a base de critérios de
eficiência produtiva, segundo os quais uma vida irremediavelmente incapaz não
tem mais qualquer valor.
65. Para um correto juízo moral da eutanásia, é preciso, antes de mais,
defini-la claramente. Por eutanásia, em sentido verdadeiro e próprio, deve-se
entender uma ação ou uma omissão que, por sua natureza e nas intenções,
provoca a morte com o objetivo de eliminar o sofrimento. « A eutanásia
situa-se, portanto, ao nível das intenções e ao nível dos métodos empregues
».76 Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado « excesso
terapêutico », ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à
situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se
poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família.
Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em
consciência « renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário
e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao
doente em casos semelhantes ».77 Há, sem dúvida, a obrigação moral de se
tratar e procurar curar-se, mas essa obrigação há-de medir-se segundo as
situações concretas, isto é, impõe-se avaliar se os meios terapêuticos à
disposição são objetivamente proporcionados às perspectivas de melhoramento.
A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio
ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana defronte à
morte.78 Na medicina atual, têm adquirido particular importância os
denominados « cuidados paliativos », destinados a tornar o sofrimento mais
suportável na fase aguda da doença e assegurar ao mesmo tempo ao paciente um
adequado acompanhamento humano. Neste contexto, entre outros problemas,
levanta-se o da licitude do recurso aos diversos tipos de analgésicos e
sedativos para aliviar o doente da dor, quando isso comporta o risco de lhe
abreviar a vida. Ora, se pode realmente ser considerado digno de louvor quem
voluntariamente aceita sofrer renunciando aos meios lenitivos da dor, para
conservar a plena lucidez e, se crente, participar, de maneira consciente, na
Paixão do Senhor, tal comportamento « heróico » não pode ser considerado
obrigatório para todos.
Já Pio XII afirmara que é lícito suprimir a dor por
meio de narcóticos, mesmo com a conseqüência de limitar a consciência e
abreviar a vida, « se não existem outros meios e se, naquelas circunstâncias,
isso em nada impede o cumprimento de outros deveres religiosos e morais ».79 É
que, neste caso, a morte não é querida ou procurada, embora por motivos razoáveis
se corra o risco dela: pretende- -se simplesmente aliviar a dor de maneira
eficaz, recorrendo aos analgésicos postos à disposição pela medicina.
Contudo, « não se deve privar o moribundo da consciência de si mesmo, sem
motivo grave »: 80 quando se aproxima a morte, as pessoas devem estar em condições
de poder satisfazer as suas obrigações morais e familiares, e devem sobretudo
poder-se preparar com plena consciência para o encontro definitivo com Deus.
Feitas estas distinções, em conformidade com o Magistério dos meus
Predecessores 81 e em comunhão com os Bispos da Igreja Católica, confirmo que
a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto morte deliberada
moralmente inaceitável de uma pessoa humana. Tal doutrina está fundada sobre a
lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da
Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal.82 A eutanásia
comporta, segundo as circunstâncias, a malícia própria do suicídio ou do
homicídio.
66. Ora, o suicídio é sempre moralmente inaceitável, tal como o homicídio. A
tradição da Igreja sempre o recusou, como opção gravemente má.83 Embora
certos condicionalismos psicológicos, culturais e sociais possam levar a
realizar um gesto que tão radicalmente contradiz a inclinação natural de cada
um à vida, atenuando ou anulando a responsabilidade subjetiva, o suicídio, sob
o perfil objetivo, é um ato gravemente imoral, porque comporta a recusa do amor
por si mesmo e a renúncia aos deveres de justiça e caridade para com o próximo,
com as várias comunidades de que se faz parte, e com a sociedade no seu
conjunto.84 No seu núcleo mais profundo, o suicídio constitui uma rejeição
da soberania absoluta de Deus sobre a vida e sobre a morte, deste modo
proclamada na oração do antigo Sábio de Israel: « Vós, Senhor, tendes o
poder da vida e da morte, e conduzis os fortes à porta do Hades e de lá os
tirais » (Sb 16, 13 Vós conduzis às portas do Hades e de lá tirais;"> ; cf. Tb 13, 2). Compartilhar a intenção suicida de
outrem e ajudar a realizá-la mediante o chamado « suicídio assistido »,
significa fazer-se colaborador e, por vezes, autor em primeira pessoa de uma
injustiça que nunca pode ser justificada, nem sequer quando requerida. « Nunca
é lícito — escreve com admirável atualidade Santo Agostinho — matar o
outro: ainda que ele o quisesse, mesmo se ele o pedisse, porque, suspenso entre
a vida e a morte, suplica ser ajudado a libertar a alma que luta contra os laços
do corpo e deseja desprender-se; nem é lícito sequer quando o doente já não
estivesse em condições de sobreviver ».85 Mesmo quando não é motivada pela
recusa egoísta de cuidar da vida de quem sofre, a eutanásia deve designar-se
uma falsa compaixão, antes uma preocupante « perversão » da mesma: a
verdadeira « compaixão », de fato, torna solidário com a dor alheia, não
suprime aquele de quem não se pode suportar o sofrimento. E mais perverso ainda
se manifesta o gesto da eutanásia, quando é realizado por aqueles que — como
os parentes — deveriam assistir com paciência e amor o seu familiar, ou por
quantos — como os médicos —, pela sua específica profissão, deveriam
tratar o doente, inclusive nas condições terminais mais penosas.
A decisão da
eutanásia torna-se mais grave, quando se configura como um homicídio, que os
outros praticam sobre uma pessoa que não a pediu de modo algum nem deu nunca
qualquer consentimento para a mesma. Atinge-se, enfim, o cúmulo do arbítrio e
da injustiça, quando alguns, médicos ou legisladores, se arrogam o poder de
decidir quem deve viver e quem deve morrer. Aparece assim reproposta a tentação
do Éden: tornar-se como Deus « conhecendo o bem e o mal » (cf. Gn 3, 5). Mas,
Deus é o único que tem o poder de fazer morrer e de fazer viver: « Só Eu é
que dou a vida e dou a morte » (Dt 32, 39; cf. 2 Rs 5, 7; 1 Sm 2, 6). Ele
exerce o seu poder sempre e apenas segundo um desígnio de sabedoria e amor.
Quando o homem usurpa tal poder, subjugado por uma lógica insensata e egoísta,
usa-o inevitavelmente para a injustiça e a morte. Assim, a vida do mais fraco
é abandonada às mãos do mais forte; na sociedade, perde-se o sentido da justiça
e fica minada pela raiz a confiança mútua, fundamento de qualquer relação
autêntica entre as pessoas.
67. Bem diverso, ao contrário, é o caminho do amor e da verdadeira compaixão,
que nos é imposto pela nossa comum humanidade e que a fé em Cristo Redentor,
morto e ressuscitado, ilumina com novas razões. A súplica que brota do coração
do homem no confronto supremo com o sofrimento e a morte, especialmente quando
é tentado a fechar-se no desespero e como que a aniquilar-se nele, é sobretudo
uma petição de companhia, solidariedade e apoio na prova.
É um pedido de
ajuda para continuar a esperar, quando falham todas as esperanças humanas. Como
nos recordou o Concílio Vaticano II, « é em face da morte que o enigma da
condição humana mais se adensa » para o homem; e, todavia, « a intuição do
próprio coração fá-lo acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína
total e o desaparecimento definitivo da sua pessoa. O germe de eternidade que
nele existe, irredutível à pura matéria, insurge-se contra a morte ».86 Esta
repugnância natural da morte e este germe de esperança na imortalidade são
iluminadas e levadas à plenitude pela fé cristã, que promete e oferece a
participação na vitória de Cristo Ressuscitado: é a vitória d'Aquele que,
pela sua morte redentora, libertou o homem da morte, « salário do pecado »
(Rm 6, 23), e lhe deu o Espírito, penhor de ressurreição e de vida (cf. Rm 8,
11). A certeza da imortalidade futura e a esperança na ressurreição prometida
projetam uma luz nova sobre o mistério do sofrimento e da morte e infundem no
crente uma força extraordinária para se abandonar ao desígnio de Deus.
O apóstolo
Paulo exprimiu esta novidade em termos de pertença total ao Senhor que abraça
qualquer condição humana: « Nenhum de nós vive para si mesmo, e nenhum de nós
morre para si mesmo. Se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o
Senhor morremos. Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor » (Rm 14,
7-8). Morrer para o Senhor significa viver a própria morte como ato supremo de
obediência ao Pai (cf. Fl 2, 8), aceitando encontrá-la na « hora » querida
e escolhida por Ele (cf. Jo 13, 1), o único que pode dizer quando está
cumprido o caminho terreno. Viver para o Senhor significa também reconhecer que
o sofrimento, embora permaneça em si mesmo um mal e uma prova, sempre se pode
tornar fonte de bem. E torna-se tal se é vivido por amor e com amor, na
participação, por dom gratuito de Deus e por livre opção pessoal, no próprio
sofrimento de Cristo crucificado. Deste modo, quem vive o seu sofrimento no
Senhor fica mais plenamente configurado com Ele (cf. Fl 3, 10; 1 Pd 2, 21) e
intimamente associado à sua obra redentora a favor da Igreja e da humanidade.87
É esta experiência do Apóstolo, que toda a pessoa que sofre é chamada a
viver: « Alegro-me nos sofrimentos suportados por vossa causa e completo na
minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a
Igreja » (Cl 1, 24).
« Importa mais obedecer a Deus do que aos homens » (At 5, 29): a lei civil e a
lei moral
68. Uma das características dos atuais atentados à vida humana — como já se
disse várias vezes — é a tendência para exigir a sua legitimação jurídica,
como se fossem direitos que o Estado deveria, pelo menos em certas condições,
reconhecer aos cidadãos e, conseqüentemente, a pretensão da execução dos
mesmos com a assistência segura e gratuita dos médicos e restantes
profissionais da saúde. Considera-se, não raro, que a vida daquele que ainda não
nasceu ou está gravemente debilitado, seria um bem simplesmente relativo: teria
de ser confrontada e ponderada com outros bens, segundo uma lógica
proporcionalista ou de puro cálculo.
Igualmente pensa-se que só quem se
encontra na situação concreta e nela está pessoalmente implicado é que
poderia realizar uma justa ponderação dos bens em jogo: por conseguinte,
unicamente essa pessoa poderia decidir sobre a moralidade da sua escolha. Por
isso, e no interesse da convivência civil e da harmonia social, o Estado
deveria respeitar essa escolha, chegando mesmo a admitir o aborto e a eutanásia.
Outras vezes, julga-se que a lei civil não poderia exigir que todos os cidadãos
vivessem segundo um grau de moralidade mais elevado do que aquele que eles
mesmos reconhecem e condividem.
Por isso, a lei deveria exprimir sempre a opinião
e a vontade da maioria dos cidadãos e reconhecer-lhes também, pelo menos em
certos casos extremos, o direito ao aborto e à eutanásia. Nesses casos, aliás,
a proibição e a punição dos referidos atos conduziria inevitavelmente —
assim o dizem — a um aumento de práticas clandestinas: e estas escapariam ao
necessário controlo social e seriam realizadas sem a devida segurança médica.
E interrogam-se, além disso, se o apoiar uma lei que não é concretamente
aplicável não significaria, em última análise, minar também a autoridade de
qualquer outra lei. Nas opiniões mais radicais, chega-se mesmo a defender que,
numa sociedade moderna e pluralista, deveria ser reconhecida a cada pessoa total
autonomia para dispor da própria vida e da vida de quem ainda não nasceu: não
seria competência da lei fazer a escolha entre as diversas opiniões morais, e
menos ainda poderia ela pretender impor uma opinião particular em detrimento
das outras.
69. Certo é que, na cultura democrática do nosso tempo, se acha amplamente
generalizada a opinião, segundo a qual o ordenamento jurídico de uma sociedade
haveria de limitar-se a registar e acolher as convicções da maioria e, conseqüentemente,
dever-se-ia construir apenas sobre aquilo que a própria maioria reconhece e
vive como moral. Se, depois, se chega a pensar que uma verdade comum e objetiva
seria realmente inacessível, então o respeito pela liberdade dos cidadãos —
que, num regime democrático, são considerados os verdadeiros soberanos —
exigiria que, a nível legislativo, se reconhecesse a autonomia da consciência
de cada um e, por conseguinte, ao estabelecer aquelas normas que são
absolutamente necessárias à convivência social, se adequassem exclusivamente
à vontade da maioria, fosse ela qual fosse. Desta maneira, todo o político
deveria separar claramente, no seu agir, o âmbito da consciência privada e o
do comportamento público.
Em conseqüência disto, registam-se duas tendências
que na aparência são diametralmente opostas. Por um lado, os indivíduos
reivindicam para si a mais completa autonomia moral de decisão, e pedem que o
Estado não assuma nem imponha qualquer concepção ética, mas se limite a
garantir o espaço mais amplo possível à liberdade de cada um, tendo como único
limite externo não lesar o espaço de autonomia a que cada um dos outros cidadãos
também tem direito.
Mas por outro lado, pensa-se que, no desempenho das funções
públicas e profissionais, o respeito pela liberdade alheia de escolha obrigaria
cada qual a prescindir das próprias convicções para se colocar ao serviço de
qualquer petição dos cidadãos, que as leis reconhecem e tutelam, aceitando
como único critério moral no exercício das próprias funções aquilo que está
estabelecido pelas mesmas leis. Deste modo, a responsabilidade da pessoa é
delegada na lei civil com a abdicação da própria consciência moral, pelo
menos no âmbito da ação pública.
70. Raiz comum de todas estas tendências é o
relativismo ético, que caracteriza grande parte da cultura contemporânea. Não
falta quem pense que tal relativismo seja uma condição da democracia, visto
que só ele garantiria tolerância, respeito recíproco entre as pessoas e adesão
às decisões da maioria, enquanto as normas morais, consideradas objetavas e
vinculantes, conduziriam ao autoritarismo e à intolerância.
Mas é exatamente
a problemática conexa com o respeito da vida que mostra os equívocos e
contradições, com terríveis resultados práticos, que se escondem nesta posição.
É verdade que a história registra casos de crimes cometidos em nome da «
verdade ».
Mas crimes não menos graves e negações radicais da liberdade
foram também cometidos e cometem-se em nome do « relativismo ético ». Quando
uma maioria parlamentar ou social decreta a legitimidade da eliminação, mesmo
sob certas condições, da vida humana ainda não nascida, porventura não
assume uma decisão « tirânica » contra o ser humano mais débil e indefeso?
Justamente reage a consciência universal diante dos crimes contra a humanidade,
de que o nosso século viveu tão tristes experiências. Porventura deixariam de
ser crimes, se, em vez de terem sido cometidos por tiranos sem escrúpulos,
fossem legitimados por consenso popular? Não se pode mitificar a democracia até
fazer dela o substituto da moralidade ou a panacéia da imoralidade.
Fundamentalmente, é um « ordenamento » e, como tal, um instrumento, não um
fim. O seu caráter « moral » não é automático, mas depende da conformidade
com a lei moral, à qual se deve submeter como qualquer outro comportamento
humano: por outras palavras, depende da moralidade dos fins que persegue e dos
meios que usa. registra hoje um consenso quase universal sobre o valor da
democracia, o que há-de ser considerado um positivo « sinal dos tempos »,
como o Magistério da Igreja já várias vezes assinalou.88 Mas, o valor da
democracia vive ou morre nos valores que ela encarna e promove: fundamentais e
imprescindíveis são certamente a dignidade de toda a pessoa humana, o respeito
dos seus direitos intangíveis e inalienáveis, e bem assim a assunção do «
bem comum » como fim e critério regulador da vida política.
Na base destes
valores, não podem estar « maiorias » de opinião provisórias e mutáveis,
mas só o reconhecimento de uma lei moral objetiva que, enquanto « lei natural
» inscrita no coração do homem, seja ponto normativo de referência para a própria
lei civil. Quando, por um trágico obscurecimento da consciência coletiva, o
cepticismo chegasse a pôr em dúvida mesmo os princípios fundamentais da lei
moral, então o próprio ordenamento democrático seria abalado nos seus
fundamentos, ficando reduzido a puro mecanismo de regulação empírica dos
diversos e contrapostos interesses.89 Alguém poderia pensar que, na falta de
melhor, já esta função reguladora fosse de apreciar em vista da paz social.
Mesmo reconhecendo qualquer ponto de verdade em tal avaliação, é difícil não
ver que, sem um ancoradouro moral objetivo, a democracia não pode assegurar uma
paz estável, até porque é ilusória a paz não fundada sobre os valores da
dignidade de cada homem e da solidariedade entre todos os homens. Nos próprios
regimes de democracia representativa, de fato, a regulação dos interesses é
freqüentemente feita a favor dos mais fortes, sendo estes os mais competentes
para manobrar não apenas as rédeas do poder, mas também a formação dos
consensos. Em tal situação, facilmente a democracia se torna uma palavra
vazia.
71. Para bem do futuro da sociedade e do progresso de uma sã democracia, urge,
pois, redescobrir a existência de valores humanos e morais essenciais e congênitos,
que derivam da própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam a dignidade
da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum Estado poderá
jamais criar, modificar ou destruir, mas apenas os deverá reconhecer, respeitar
e promover. Importa retomar, neste sentido, os elementos fundamentais da visão
das relações entre lei civil e lei moral, tal como os propõe a Igreja, mas
que fazem parte também do patrimônio das grandes tradições jurídicas da
humanidade. Certamente, a função da lei civil é diversa e de âmbito mais
limitado que a da lei moral. De fato, « em nenhum âmbito da vida, pode a lei
civil substituir-se à consciência, nem pode ditar normas naquilo que
ultrapassa a sua competência »,90 que é assegurar o bem comum das pessoas,
mediante o reconhecimento e defesa dos seus direitos fundamentais, a promoção
da paz e da moralidade pública.91 Com efeito, a função da lei civil consiste
em garantir uma convivência social na ordem e justiça verdadeira, para que
todos « tenhamos vida tranqüila e sossegada, com toda a piedade e honestidade
» (1 Tm 2, 2). Por isso mesmo, a lei civil deve assegurar a todos os membros da
sociedade o respeito de alguns direitos fundamentais, que pertencem por natureza
à pessoa e que qualquer lei positiva tem de reconhecer e garantir. Primeiro e
fundamental entre eles é o inviolável direito à vida de todo o ser humano
inocente.
Se a autoridade pública pode, às vezes, renunciar a reprimir algo
que, se proibido, provocaria um dano maior,92 ela não poderá nunca aceitar
como direito dos indivíduos — ainda que estes sejam a maioria dos membros da
sociedade —, a ofensa infligida a outras pessoas através do menosprezo de um
direito tão fundamental como o da vida. A tolerância legal do aborto ou da
eutanásia não pode, de modo algum, fazer apelo ao respeito pela consciência
dos outros, precisamente porque a sociedade tem o direito e o dever de se
defender contra os abusos que se possam verificar em nome da consciência e com
o pretexto da liberdade.93 A este propósito, João XXIII recordara na Encíclica
Pacem in terris: « Hoje em dia crê-se que o bem comum consiste sobretudo no
respeito dos direitos e deveres da pessoa. Oriente-se, pois, o empenho dos
poderes públicos sobretudo no sentido que esses direitos sejam reconhecidos,
respeitados, harmonizados, tutelados e promovidos, tornando-se assim mais fácil
o cumprimento dos respectivos deveres. -A função primordial de qualquer poder
público é defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o
cumprimento dos seus deveres-. Por isso mesmo, se a autoridade não reconhecer
os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser como
também as suas disposições estão privadas de qualquer valor jurídico ».94
72. Também está em continuidade com toda a Tradição da Igreja, a doutrina da
necessidade da lei civil se conformar com a lei moral, como se vê na citada encíclica
de João XXIII: « A autoridade é exigência da ordem moral e promana de Deus.
Por isso, se os governantes legislarem ou prescreverem algo contra essa ordem e,
portanto, contra a vontade de Deus, essas leis e essas prescrições não podem
obrigar a consciência dos cidadãos. (...) Neste caso, a própria autoridade
deixa de existir, degenerando em abuso do poder ».95 O mesmo ensinamento
aparece claramente em S. Tomás de Aquino, que escreve: « A lei humana tem
valor de lei enquanto está de acordo com a rata razão: derivando, portanto, da
lei eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não
tem valor, mas é um ato de violência ».96 E ainda: « Toda a lei constituída
pelos homens tem força de lei só na medida em que deriva da lei natural. Se,
ao contrário, em alguma coisa está em contraste com a lei natural, então não
é lei mas sim corrupção da lei ».97 Ora, a primeira e mais imediata aplicação
desta doutrina diz respeito à lei humana que menospreza o direito fundamental e
primordial à vida, direito próprio de cada homem.
Assim, as leis que legitimam
a eliminação direta de seres humanos inocentes, por meio do aborto e da eutanásia,
estão em contradição total e insanável com o direito inviolável à vida, próprio
de todos os homens, e negam a igualdade de todos perante a lei. Poder-se-ia
objetar que é diverso o caso da eutanásia, quando pedida em plena consciência
pelo sujeito interessado. Mas um Estado que legitimasse tal pedido, autorizando
a sua realização, estaria a legalizar um caso de suicídio-homicídio, contra
os princípios fundamentais da não- -disponibilidade da vida e da tutela de
cada vida inocente. Deste modo, favorece-se a diminuição do respeito pela vida
e abre-se a estrada a comportamentos demolidores da confiança nas relações
sociais.
As leis que autorizam e favorecem o aborto e a eutanásia colocam-se,
pois, radicalmente não só contra o bem do indivíduo, mas também contra o bem
comum e, por conseguinte, carecem totalmente de autêntica validade jurídica.
De fato, o menosprezo do direito à vida, exatamente porque leva a eliminar a
pessoa, ao serviço da qual a sociedade tem a sua razão de existir, é aquilo
que se contrapõe mais frontal e irreparavelmente à possibilidade de realizar o
bem comum. Segue-se daí que, quando uma lei civil legitima o aborto ou a eutanásia,
deixa, por isso mesmo, de ser uma verdadeira lei civil, moralmente obrigatória.
73. O aborto e a eutanásia são, portanto, crimes que nenhuma lei humana pode
pretender legitimar. Leis deste tipo não só não criam obrigação alguma para
a consciência, como, ao contrário, geram uma grave e precisa obrigação de
opor-se a elas através da objeção de consciência. Desde os princípios da
Igreja, a pregação apostólica inculcou nos cristãos o dever de obedecer às
autoridades públicas legitimamente constituídas (cf. Rm 13, 1-7; 1 Pd 2,
13-14), mas, ao mesmo tempo, advertiu firmemente que « importa mais obedecer a
Deus do que aos homens » (At 5, 29). Já no Antigo Testamento e a propósito de
ameaças contra a vida, encontramos um significativo exemplo de resistência à
ordem injusta da autoridade.
As parteiras dos hebreus opuseram-se ao Faraó, que
lhes tinha dado a ordem de matarem todos os rapazes por ocasião do parto. « Não
cumpriram a ordem do rei do Egito, e deixaram viver os rapazes » (Ex 1, 17).
Mas há que salientar o motivo profundo deste seu comportamento: « As parteiras
temiam a Deus » (Ex 1, 17). É precisamente da obediência a Deus — o único
a Quem se deve aquele temor que significa reconhecimento da sua soberania
absoluta — que nascem a força e a coragem de resistir às leis injustas dos
homens. É a força e a coragem de quem está disposto mesmo a ir para a prisão
ou a ser morto à espada, na certeza de que nisto « está a paciência e a fé
dos Santos » (Ap 13, 10). Portanto, no caso de uma lei intrinsecamente injusta,
como aquela que admite o aborto ou a eutanásia, nunca é lícito conformar-se
com ela, « nem participar numa campanha de opinião a favor de uma lei de tal
natureza, nem dar-lhe a aprovação com o próprio voto ».98 Um particular
problema de consciência poder-se-ia pôr nos casos em que o voto parlamentar
fosse determinante para favorecer uma lei mais restritiva, isto é, tendente a
restringir o número dos abortos autorizados, como alternativa a uma lei mais
permissiva já em vigor ou posta a votação. Não são raros tais casos.
Sucede, com efeito, que, enquanto, nalgumas partes do mundo, continuam as
campanhas para a introdução de leis favoráveis ao aborto, tantas vezes
apoiadas por organismos internacionais poderosos, noutras nações, pelo contrário
— particularmente naquelas que já fizeram a amarga experiência de tais
legislações permissivas —, vão-se manifestando sinais de reconsideração.
No caso hipotizado, quando não fosse possível esconjurar ou abrogar
completamente uma lei abortista, um deputado, cuja absoluta oposição pessoal
ao aborto fosse clara e conhecida de todos, poderia licitamente oferecer o próprio
apoio a propostas que visassem limitar os danos de uma tal lei e diminuir os
seus efeitos negativos no âmbito da cultura e da moralidade pública. Ao
proceder assim, de fato, não se realiza a colaboração ilícita numa lei
injusta; mas cumpre-se, antes, uma tentativa legítima e necessária para
limitar os seus aspectos iníquos. 74. A introdução de legislações injustas
põe freqüentemente os homens moralmente retos frente a difíceis problemas de
consciência em matéria de colaboração, por causa da imperiosa afirmação do
próprio direito de não ser obrigado a participar em ações moralmente más.
Às vezes, as opções que se impõem tomar, são dolorosas e podem requerer o
sacrifício de posições profissionais consolidadas ou a renúncia a legítimas
perspectivas de promoção na carreira. Noutros casos, pode acontecer que o
cumprimento de algumas ações, em si mesmas indiferentes ou mesmo até
positivas, previstas no articulado de legislações globalmente injustas,
consinta a salvaguarda de vidas humanas ameaçadas.
Mas, por outro lado, pode-se
justamente temer que a disponibilidade a realizar tais ações não só provoque
um escândalo e favoreça o enfraquecimento da oposição necessária aos
atentados contra a vida, como insensivelmente induza também a conformar-se cada
vez mais com uma lógica permissiva. Para iluminar esta difícil questão moral,
é preciso recorrer aos princípios gerais referentes à cooperação em ações
moralmente más. Os cristãos, como todos os homens de boa vontade, são
chamados, sob grave dever de consciência, a não prestar a sua colaboração
formal em ações que, apesar de admitidas pela legislação civil, estão em
contraste com a lei de Deus. Na verdade, do ponto de vista moral, nunca é lícito
cooperar formalmente no mal.
E essa cooperação verifica-se quando a ação
realizada, pela sua própria natureza ou pela configuração que tem assumido
num contexto concreto, se qualifica como participação direta num ato contra a
vida humana inocente ou como aprovação da intenção moral do agente
principal. Tal cooperação nunca pode ser justificada invocando o respeito da
liberdade alheia, nem apoiando-se no fato de que a lei civil a prevê e requer:
com efeito, nos atos cumpridos pessoalmente por cada um, existe uma
responsabilidade moral, à qual ninguém poderá jamais subtrair-se e sobre a
qual cada um será julgado pelo próprio Deus (cf. Rm 2, 6; 14, 12).
Recusar a
própria participação para cometer uma injustiça é não só um dever moral,
mas também um direito humano basilar. Se assim não fosse, a pessoa seria
constrangida a cumprir uma ação intrinsecamente incompatível com a sua
dignidade e, desse modo, ficaria radicalmente comprometida a sua própria
liberdade, cujo autêntico sentido e fim reside na orientação para a verdade e
o bem. Trata-se, pois, de um direito essencial que, precisamente como tal,
deveria estar previsto e protegido pela própria lei civil. Nesse sentido, a
possibilidade de se recusar a participar na fase consultiva, preparatória e
executiva de semelhantes atos contra a vida, deveria ser assegurada aos médicos,
aos outros profissionais da saúde e aos responsáveis pelos hospitais, clínicas
e casas de saúde. Quem recorre à objeção de consciência deve ser
salvaguardado não apenas de sanções penais, mas ainda de qualquer dano no
plano legal, disciplinar, econômico e profissional. « Amarás ao teu próximo
como a ti mesmo » (Lc 10, 27): « promove » a vida
75. Os mandamentos de Deus ensinam-nos o caminho da vida. Os preceitos morais
negativos, isto é, aqueles que declaram moralmente inaceitável a escolha de
uma determinada ação, têm um valor absoluto para a liberdade humana: valem
sempre e em todas as circunstâncias, sem exceção. Indicam que a escolha de
determinado comportamento é radicalmente incompatível com o amor a Deus e com
a dignidade da pessoa, criada à sua imagem: por isso, tal escolha não pode ser
resgatada pela bondade de qualquer intenção ou conseqüência, está em
contraste insanável com a comunhão entre as pessoas, contradiz a decisão
fundamental de orientar a própria vida para Deus.99 Já neste sentido, os
preceitos morais negativos têm uma função positiva importantíssima: o -não-
que exigem incondicionalmente, aponta o limite intransponível abaixo do qual o
homem livre não pode descer, e simultaneamente indica o mínimo que ele deve
respeitar e do qual deve partir para pronunciar inumeráveis « sins », capazes
de cobrir progressivamente todo o horizonte do bem (cf. Mt 5, 48), em cada um
dos seus âmbitos. Os mandamentos, de modo particular os preceitos morais
negativos, são o início e a primeira etapa necessária do caminho da
liberdade: « A primeira liberdade — escreve Santo Agostinho — consiste em
estar isento de crimes (...), como seja o homicídio, o adultério, a fornicação,
o roubo, a fraude, o sacrilégio, e assim por diante. Quando alguém começa a não
ter estes crimes (e nenhum cristão os deve ter), começa a levantar a cabeça
para a liberdade, mas isto é apenas o início da liberdade, não a liberdade
perfeita ».100
76. O mandamento « não matarás » estabelece, pois, o ponto de partida de um
caminho de verdadeira liberdade, que nos leva a promover ativamente a vida e a
desenvolver determinadas atitudes e comportamentos ao seu serviço: procedendo
assim, exercemos a nossa responsabilidade para com as pessoas que nos estão
confiadas, e manifestamos, em obras e verdade, o nosso reconhecimento a Deus
pelo grande dom da vida (cf. Sl 139/138, 13-14). O Criador confiou a vida do
homem à sua solicitude responsável, não para que disponha arbitrariamente
dela mas a guarde com sabedoria e administre com amorosa fidelidade. O Deus da
Aliança confiou a vida de cada homem ao homem, seu irmão, segundo a lei da
reciprocidade no dar e no receber, no dom de si e no acolhimento do outro. Na
plenitude dos tempos, o Filho de Deus, encarnando e dando a sua vida pelo homem,
mostrou a altura e profundidade a que pode chegar esta lei da reciprocidade. Com
o dom do seu Espírito, Cristo dá conteúdos e significados novos à lei da
reciprocidade, à entrega do homem ao homem. O Espírito, que é artífice de
comunhão no amor, cria entre os homens uma nova fraternidade e solidariedade,
verdadeiro reflexo do mistério de recíproca doação e acolhimento próprios
da Santíssima Trindade. O próprio Espírito torna-Se a lei nova, que dá força
aos crentes e apela à sua responsabilidade para viverem reciprocamente o dom de
si e o acolhimento do outro, participando no próprio amor de Jesus Cristo e
segundo a sua medida.
77. Animado e plasmado por esta lei nova está também o mandamento que diz « não
matarás ». Para o cristão, isto implica, em última análise, o imperativo de
respeitar, amar e promover a vida de cada irmão, segundo as exigências e as
dimensões do amor de Deus em Jesus Cristo. « Ele deu a Sua vida por nós, e nós
devemos dar a vida pelos nossos irmãos » (1 Jo 3, 16). O mandamento « não
matarás », inclusive nos seus conteúdos mais positivos de respeito, amor e
promoção da vida humana, vincula todo o homem. De fato, ressoa na consciência
moral de cada um como um eco irreprimível da aliança primordial de Deus
criador com o homem; todos o podem conhecer pela luz da razão e observar pela
obra misteriosa do Espírito que, soprando onde quer (cf. Jo 3, 8), alcança e
inspira todo o homem que vive neste mundo. Constitui, portanto, um serviço de
amor, aquele que todos estamos empenhados em assegurar ao nosso próximo, para
que a sua vida seja defendida e promovida sempre, mas sobretudo quando é mais débil
ou ameaçada. É uma solicitude pessoal mas também social, que todos devemos
cultivar, pondo o respeito incondicional da vida humana como fundamento de uma
sociedade renovada. É-nos pedido que amemos e honremos a vida de cada homem e
de cada mulher, e que trabalhemos, com constância e coragem, para que, no nosso
tempo atravessado por demasiados sinais de morte, se instaure finalmente uma
nova cultura da vida, fruto da cultura da verdade e do amor.
CAPÍTULO IV
A MIM O FIZESTES POR UMA NOVA CULTURA DA VIDA HUMANA
« Vós sois o povo adquirido por Deus, para proclamardes as suas obras
maravilhosas » (1 Pd 2, 9): o povo da vida e pela vida
78. A Igreja recebeu o Evangelho, como anúncio e fonte de alegria e de salvação.
Recebeu-o em dom de Jesus, que foi enviado pelo Pai « para anunciar a Boa Nova
aos pobres » (Lc 4, 18). Recebeu-o através dos Apóstolos, que o Mestre enviou
pelo mundo inteiro (cf. Mc 16, 15; Mt 28, 19-20). Nascida desta ação missionária,
a Igreja ouve ressoar em si mesma todos os dias aquela palavra de incitamento
apostólico: « Ai de mim se não evangelizar! » (1 Cor 9, 16). « Evangelizar
— como escrevia Paulo VI — constitui, de fato, a graça e a vocação própria
da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar ».101 A
evangelização é uma ação global e dinâmica que envolve a Igreja na sua
participação da missão profética, sacerdotal e real do Senhor Jesus. Por
isso, a evangelização compreende indivisivelmente as dimensões do anúncio,
da celebração e do serviço da caridade. É um ato profundamente eclesial, que
compromete todos os operários do Evangelho, cada um segundo os seus carismas e
o próprio ministério. O mesmo acontece quando se trata de anunciar o Evangelho
da vida, parte integrante do Evangelho que é Jesus Cristo. Nós estamos ao
serviço deste Evangelho, amparados na certeza de o termos recebido em dom e de
sermos enviados a proclamá-lo a toda a humanidade, « até aos confins do mundo
» (At 1, 8). Por isso, grata e humildemente conservamos a consciência de ser o
povo da vida e pela vida e assim nos apresentamos diante de todos. 79. Somos o
povo da vida, porque Deus, no seu amor generoso, deu-nos o Evangelho da vida e,
por este mesmo Evangelho, fomos transformados e salvos. Fomos reconquistados
pelo « Príncipe da vida » (At 3, 15), com o preço do seu sangue precioso
(cf. 1 Cor 6, 20; 7, 23; 1 Pd 1, 19), e, pelo banho batismal, fomos enxertados
n-Ele (cf. Rm 6, 4-5; Cl 2, 12) como ramos que recebem seiva e fecundidade da
única árvore (cf. Jo 15, 5). Interiormente renovados pela graça do Espírito,
« Senhor que dá a vida », tornamo-nos um povo pela vida, e como tal somos
chamados a comportar-nos. Somos enviados: estar ao serviço da vida não é para
nós um título de glória, mas um dever que nasce da consciência de sermos «
o povo adquirido por Deus para proclamar as suas obras maravilhosas » (cf. 1
Pd 2, 9). No nosso caminho, guia-nos e anima-nos a lei do amor: um amor, cuja
fonte e modelo é o Filho de Deus feito homem que « pela sua morte deu a vida
ao mundo ».102 Somos enviados como povo. O compromisso de servir a vida incumbe
sobre todos e cada um. É uma responsabilidade tipicamente « eclesial », que
exige a ação concertada e generosa de todos os membros e estruturas da
comunidade cristã. Mas a sua característica de dever comunitário não elimina
nem diminui a responsabilidade de cada pessoa, a quem é dirigido o mandamento
do Senhor de « fazer-se próximo » de todo o homem: « Vai e faz tu também do
mesmo modo » (Lc 10, 37). Todos juntos sentimos o dever de anunciar o Evangelho
da vida, de o celebrar na liturgia e na existência inteira, de o servir com as
diversas iniciativas e estruturas de apoio e promoção. « O que vimos e
ouvimos, isso vos anunciamos » (1 Jo 1, 3): anunciar o Evangelho da vida 80. «
O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o
que contemplamos e as nossas mãos apalparam acerca do Verbo da vida (...) isso
vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão conosco » (1 Jo 1,
1.3). Jesus é o único Evangelho: Ele é tudo o que temos para dizer e
testemunhar. O próprio anúncio de Jesus é anúncio da vida. Ele, de fato, é
o « Verbo da vida » (1 Jo 1, 1). N-Ele, « a vida manifestou-se » (1 Jo 1,
2); melhor, Ele mesmo é a « vida eterna que estava no Pai e que nos foi
manifestada » (1 Jo 1, 2). Esta mesma vida, graças ao dom do Espírito, foi
comunicada ao homem. Orientada para a vida em plenitude — a « vida eterna »
—, também a vida terrena de cada um adquire o seu sentido pleno. Iluminados
pelo Evangelho da vida, sentimos a necessidade de o proclamar e testemunhar pela
surpreendente novidade que o caracteriza: identificando-se com o próprio Jesus,
portador de toda a novidade 103 e vencedor daquele « envelhecimento » que provém
do pecado e conduz à morte,104 este Evangelho supera toda a expectativa do
homem e revela a grandeza excelsa, a que a dignidade da pessoa é elevada pela
graça. Assim a contempla S. Gregório de Nissa: « Quando comparado com os
outros seres, o homem nada vale, é pó, erva, ilusão; mas, uma vez adotado
como filho pelo Deus do universo, é feito familiar deste Ser, cuja excelência
e grandeza ninguém pode ver, ouvir nem compreender. Com que palavra, pensamento
ou arroubo de espírito poderemos celebrar a superabundância desta graça? O
homem supera a sua natureza: de mortal passa a imortal, de perecível a imperecível,
de efêmero a eterno, de homem torna-se deus ».105 A gratidão e a alegria por
esta dignidade incomensurável do homem incitam-nos a tornar os demais
participantes desta mensagem: « O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos,
para que também vós tenhais comunhão conosco » (1 Jo 1, 3). É necessário
fazer chegar o Evangelho da vida ao coração de todo o homem e mulher, e
inseri-lo nas pregas mais íntimas do tecido da sociedade inteira.
81. Trata-se em primeiro lugar de anunciar o núcleo deste Evangelho: é o anúncio
de um Deus vivo e solidário, que nos chama a uma profunda comunhão Consigo e
nos abre à esperança segura da vida eterna; é a afirmação do laço indivisível
que existe entre a pessoa, a sua vida e a própria corporeidade; é a apresentação
da vida humana como vida de relação, dom de Deus, fruto e sinal do seu amor;
é a proclamação da extraordinária relação de Jesus com todo o homem, que
permite reconhecer o rosto de Cristo em cada rosto humano; é a indicação do
« dom sincero de si » como tarefa e lugar de plena realização da própria
liberdade. Importa, depois, mostrar todas as conseqüências deste mesmo
Evangelho, que se podem resumir assim: a vida humana, dom precioso de Deus, é
sagrada e inviolável, e, por isso mesmo, o aborto provocado e a eutanásia são
absolutamente inaceitáveis; a vida do homem não apenas não deve ser
eliminada, mas há-de ser protegida com toda a atenção e carinho; a vida
encontra o seu sentido no amor recebido e dado, em cujo horizonte haurem plena
verdade a sexualidade e a procriação humana; nesse amor, até mesmo o
sofrimento e a morte têm um sentido, podendo tornar-se acontecimentos de salvação,
não obstante perdurar o mistério que os envolve; o respeito pela vida exige
que a ciência e a técnica estejam sempre orientadas para o homem e para o seu
desenvolvimento integral; a sociedade inteira deve respeitar, defender e
promover a dignidade de toda a pessoa humana, em cada momento e condição da
sua vida.
82. Para sermos verdadeiramente um povo ao serviço da vida, temos de propor,
com constância e coragem, estes conteúdos, desde o primeiro anúncio do
Evangelho, e, depois, na catequese e nas diversas formas de pregação, no diálogo
pessoal e em toda a ação educativa. Aos educadores, professores, catequistas e
teólogos, incumbe o dever de pôr em destaque as razões antropológicas que
fundamentam e apóiam o respeito de cada vida humana. Desta forma, ao mesmo tempo
que faremos resplandecer a original novidade do Evangelho da vida, poderemos
ajudar os demais a descobrirem, inclusive à luz da razão e da experiência,
como a mensagem cristã ilumina plenamente o homem e o significado do seu ser e
existir; encontraremos valiosos pontos de encontro e diálogo também com os não
crentes, empenhados todos juntos a fazer despertar uma nova cultura da vida.
Cercados pelas vozes mais constrastantes, enquanto muitos rejeitam a sã
doutrina sobre a vida do homem, sentimos dirigida a nós a recomendação de
Paulo a Timóteo: « Prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente,
repreende, censura e exorta com bondade e doutrina » (2 Tm 4, 2). Com
particular vigor, há-de ressoar esta exortação no coração de quantos na
Igreja, mais diretamente e a diverso título, participam da sua missão de «
mestra » da verdade. Ressoe, antes de mais, em nós, Bispos, que somos os
primeiros a quem é pedido tornar-se incansável anunciador do Evangelho da
vida; está-nos confiado também o dever de vigiar sobre a transmissão íntegra
e fiel do ensinamento proposto nesta Encíclica, e de recorrer às medidas mais
oportunas para que os fiéis sejam preservados de toda a doutrina contrária ao
mesmo.
Havemos de dedicar especial atenção às Faculdades Teológicas, aos
Seminários e às diversas Instituições Católicas, para que aí seja
comunicado, ilustrado e aprofundado o conhecimento da sã doutrina.106 A exortação
de Paulo seja também ouvida por todos os teólogos, pastores e quantos
desempenham tarefas de ensino, catequese e formação das consciências: cientes
do papel que lhes cabe, não assumam nunca a grave responsabilidade de atraiçoar
a verdade e a própria missão, expondo idéias pessoais contrárias ao
Evangelho da vida, que o Magistério fielmente propõe e interpreta. Quando
anunciarmos este Evangelho, não devemos temer a oposição e a impopularidade,
recusando qualquer compromisso e ambigüidade que nos conformem com a
mentalidade deste mundo (cf. Rm 12, 2). Com a força recebida de Cristo, que
venceu o mundo pela sua morte e ressurreição (cf. Jo 16, 33), devemos estar no
mundo, mas não ser do mundo (cf. Jo 15, 19; 17, 16). « Eu Vos louvo porque me
fizestes como um prodígio » (Sl 139/138, 14): celebrar o Evangelho da vida
83. Enviados ao mundo como « povo pela vida », o nosso anúncio deve tornar-se
também uma verdadeira e própria celebração do Evangelho da vida. É
precisamente esta celebração, com toda a força evocativa dos seus gestos, símbolos
e ritos, que se torna o lugar mais precioso e significativo para transmitir a
beleza e a grandeza desse Evangelho. Para isso, urge, antes de mais, cultivar,
em nós e nos outros, um olhar contemplativo.107 Este nasce da fé no Deus da
vida, que criou cada homem fazendo dele um prodígio (cf. Sl 139/138, 14). É o
olhar de quem observa a vida em toda a sua profundidade, reconhecendo nela as
dimensões de generosidade, beleza, apelo à liberdade e à responsabilidade. É
o olhar de quem não pretende apoderar-se da realidade, mas a acolhe como um
dom, descobrindo em todas as coisas o reflexo do Criador e em cada pessoa a sua
imagem viva (cf. Gn 1, 27; Sl 8, 6). Este olhar não se deixa cair em desânimo
à vista daquele que se encontra enfermo, atribulado, marginalizado, ou às
portas da morte; mas deixa-se interpelar por todas estas situações procurando
nelas um sentido, sendo, precisamente em tais circunstâncias, que se apresenta
disponível para ler de novo no rosto de cada pessoa um apelo ao entendimento,
ao diálogo, à solidariedade.
É tempo de todos assumirem este olhar,
tornando-se novamente capazes de venerar e honrar cada homem, com ânimo repleto
de religioso assombro, como nos convidava a fazer Paulo VI numa das suas
mensagens natalícias.108 Animado por este olhar contemplativo, o povo novo dos
redimidos não pode deixar de prorromper em hinos de alegria, louvor e gratidão
pelo dom inestimável da vida, pelo mistério do chamamento de todo o homem a
participar, em Cristo, na vida da graça e numa existência de comunhão sem fim
com Deus Criador e Pai.
84. Celebrar o Evangelho da vida significa celebrar o Deus da vida, o Deus que dá
a vida: « Nós devemos celebrar a Vida eterna, da qual procede qualquer outra
vida. Dela recebe a vida, na proporção das respectivas capacidades, todo o ser
que, de algum modo, participa da vida. Essa Vida divina, que está acima de
qualquer vida, vivifica e conserva a vida. Toda a vida e qualquer movimento
vital procedem desta Vida que transcende cada vida e cada princípio de vida. A
Ela devem as almas a sua incorruptibilidade, como também vivem, graças a Ela,
todos os animais e todas as plantas que recebem da vida um eco mais débil. Aos
homens, seres compostos de espírito e matéria, a Vida dá a vida. Se depois
nos acontece abandoná-la, então a Vida, pelo transbordar do seu amor pelo
homem, converte-nos e chama-nos a Si.
E mais... Promete também conduzir-nos —
alma e corpo — à vida perfeita, à imortalidade. É demasiado pouco dizer que
esta Vida é viva: Ela é Princípio de vida, Causa e Fonte única de vida. Todo
o vivente deve contemplá-la e louvá-la: é Vida que transborda de vida ».109
Como o Salmista, também nós, na oração diária individual e comunitária,
louvamos e bendizemos a Deus nosso Pai que nos plasmou no seio materno, viu-nos
e amou-nos quando estávamos ainda em embrião (cf. Sl 139/138, 13.15-16), e
exclamamos, com alegria irreprimível: « Eu Vos louvo porque me fizestes como
um prodígio; as vossas obras são admiráveis, conheceis a sério a minha alma
» (Sl 139/138, 14). Sim, « esta vida mortal, não obstante as suas aflições,
os seus mistérios obscuros, os seus sofrimentos, a sua fatal caducidade, é um
fato belíssimo, um prodígio sempre original e enternecedor, um acontecimento
digno de ser cantado com júbilo e glória ».110 Mais, o homem e a sua vida não
se revelam apenas como um dos prodígios mais altos da criação: Deus conferiu
ao homem uma dignidade quase divina (cf. Sl 8, 6-7). Em cada criança que nasce
e em cada homem que vive ou morre, reconhecemos a imagem da glória de Deus: nós
celebramos esta glória em cada homem, sinal do Deus vivo, ícone de Jesus
Cristo. Somos chamados a exprimir assombro e gratidão pela vida recebida em dom
e a acolher, saborear e comunicar o Evangelho da vida, não só através da oração
pessoal e comunitária, mas sobretudo com as celebrações do ano litúrgico. No
mesmo contexto, há que recordar, de modo particular, os Sacramentos, sinais
eficazes da presença e ação salvadora do Senhor Jesus na existência cristã:
tornam os homens participantes da vida divina, assegurando-lhes a energia
espiritual necessária para realizarem plenamente o verdadeiro significado do
viver, do sofrer e do morrer. Graças a uma genuína descoberta do sentido dos
ritos e à sua adequada valorização, as celebrações litúrgicas, sobretudo
as sacramentais, serão capazes de exprimir cada vez melhor a verdade plena
acerca do nascimento, da vida, do sofrimento e da morte, ajudando a viver estas
realidades como participação no mistério pascal de Cristo morto e
ressuscitado.
85. Na celebração do
Evangelho da vida, é preciso saber apreciar e valorizar também os gestos e os
símbolos, de que são ricas as diversas tradições e costumes culturais dos
povos. Trata-se de momentos e formas de encontro, pelos quais, nos diversos países
e culturas, se manifesta a alegria pela vida que nasce, o respeito e defesa de
cada existência humana, o cuidado por quem sofre ou passa necessidade, a
solidariedade com o idoso ou o moribundo, a partilha da tristeza de quem está
de luto, a esperança e o desejo da imortalidade. Nesta perspectiva e acolhendo
a sugestão feita pelos Cardeais no Consistório de 1991, proponho que se
celebre anualmente um Dia em defesa da Vida, nas diversas Nações, à semelhança
do que já se verifica por iniciativa de algumas Conferências Episcopais. É
necessário que essa ocorrência seja preparada e celebrada com a ativa
participação de todas as componentes da Igreja local.
O seu objetivo principal
é suscitar nas consciências, nas famílias, na Igreja e na sociedade, o
reconhecimento do sentido e valor da vida humana em todos os seus momentos e
condições, concentrando a atenção de modo especial na gravidade do aborto e
da eutanásia, sem contudo transcurar os outros momentos e aspectos da vida que
merecem ser, de vez em quando, tomados em atenta consideração, conforme a
evolução da situação histórica sugerir.
86. Em coerência com o culto espiritual agradável a Deus (cf.Rm 12, 1), a
celebração do Evangelho da vida requer a sua concretização sobretudo na
existência quotidiana, vivida no amor pelos outros e na doação de si próprio.
Assim, toda a nossa existência tornar-se-á acolhimento autêntico e responsável
do dom da vida e louvor sincero e agradecido a Deus que nos fez esse dom. É o
que sucede já com tantos e tantos gestos de doação, freqüentemente humilde e
escondida, cumpridos por homens e mulheres, crianças e adultos, jovens e
idosos, sãos e doentes.
É neste contexto, rico de humanidade e amor, que
nascem também os gestos heróicos. Estes são a celebração mais solene do
Evangelho da vida, porque o proclamam com o dom total de si; são a manifestação
refulgente do mais elevado grau de amor, que é dar a vida pela pessoa amada
(cf. Jo 15, 13); são a participação no mistério da Cruz, na qual Jesus
revela quão grande valor tem para Ele a vida de cada homem e como esta se
realiza em plenitude no dom sincero de si. Além dos fastos clamorosos, existe o
heroísmo do quotidiano, feito de pequenos ou grandes gestos de partilha que
alimentam uma autêntica cultura da vida. Entre estes gestos, merece particular
apreço a doação de órgãos feita, segundo formas eticamente aceitáveis,
para oferecer uma possibilidade de saúde e até de vida a doentes, por vezes já
sem esperança.
A tal heroísmo do quotidiano, pertence o testemunho silencioso,
mas tão fecundo e eloqüente, de « todas as mães corajosas, que se dedicam
sem reservas à própria família, que sofrem ao dar à luz os próprios filhos,
e depois estão prontas a abraçar qualquer fadiga e a enfrentar todos os sacrifícios,
para lhes transmitir quanto de melhor elas conservam em si ».111 No cumprimento
da sua missão, « nem sempre estas mães heróicas encontram apoio no seu
ambiente. Antes, os modelos de civilização, com freqüência promovidos e
propagados pelos meios de comunicação, não favorecem a maternidade. Em nome
do progresso e da modernidade, são apresentados como já superados os valores
da fidelidade, da castidade e do sacrifício, nos quais se distinguiram e
continuam a distinguir-se multidões de esposas e de mães cristãs. (...) Nós
vos agradecemos, mães heróicas, o vosso amor invencível!
Nós vos agradecemos
a intrépida confiança em Deus e no seu amor. Nós vos agradecemos o sacrifício
da vossa vida. (...) Cristo, no Mistério Pascal, restituiu-vos o dom que Lhe
fizestes. Ele, de fato, tem o poder de vos restituir a vida, que Lhe levastes em
oferenda ».112 « De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé se
não tiver obras? » (Tg 2, 14): servir o Evangelho da vida
87. Em virtude da participação na missão real de Cristo, o apoio e a promoção
da vida humana devem atuar através do serviço da caridade, que se exprime no
testemunho pessoal, nas diversas formas de voluntariado, na animação social e
no compromisso político. Trata-se de uma exigência sobremaneira premente na
hora atual, em que a « cultura da morte » se contrapõe à « cultura da vida
», de forma tão forte que muitas vezes parece levar a melhor. Antes ainda, porém,
trata-se de uma exigência que nasce da « fé que atua pela caridade » (Gl 5,
6), como nos adverte a Carta de S. Tiago: « De que aproveitará, irmãos, a
alguém dizer que tem fé se não tiver obras? Acaso essa fé poderá salvá-lo?
Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e
um de vós lhe disser: -Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos-, sem lhes dar o
que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se
ela não tiver obras, é morta em si mesma » (2, 14-17). No serviço da
caridade, há uma atitude que nos há-de animar e caracterizar: devemos cuidar
do outro enquanto pessoa confiada por Deus à nossa responsabilidade. Como discípulos
de Jesus, somos chamados a fazermo-nos próximo de cada homem (cf. Lc 10,
29-37), reservando uma preferência especial a quem vive mais pobre, sozinho e
necessitado.
É precisamente através da ajuda prestada ao faminto, ao sedento,
ao estrangeiro, ao nu, ao doente, ao encarcerado — como também à criança
ainda não nascida, ao idoso que está doente ou perto da morte —, que temos a
possibilidade de servir Jesus, como Ele mesmo declarou: « Sempre que fizestes
isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes » (Mt 25,
40). Por isso, não podemos deixar de nos sentir interpelados e julgados por
esta página sempre atual de S. João Crisóstomo: « Queres honrar o corpo de
Cristo? Não O transcures quando se encontrar nu! Não vale prestares honras
aqui no templo com tecidos de seda, e depois transcurá-Lo lá fora, onde sofre
frio e nudez ».113 O serviço da caridade a favor da vida deve ser
profundamente unitário: não pode tolerar unilateralismos e discriminações, já
que a vida humana é sagrada e inviolável em todas as suas fases e situações;
é um bem indivisível.
Trata-se de «cuidar » da vida toda e da vida de todos.
Ou melhor ainda e mais profundamente, trata-se de ir até às próprias raízes
da vida e do amor. Partindo exatamente deste amor profundo por todo o homem e
mulher, foi-se desenvolvendo, ao longo dos séculos, uma extraordinária história
de caridade, que introduziu, na vida eclesial e civil, numerosas estruturas de
serviço à vida, que suscitam a admiração até do observador menos prevenido.
É uma história que cada comunidade cristã deve, com renovado sentido de
responsabilidade, continuar a escrever graças a uma múltipla ação pastoral e
social.
Neste sentido, é preciso criar formas discretas mas eficazes de
acompanhamento da vida nascente, prestando uma especial solidariedade àquelas mães
que, mesmo privadas do apoio do pai, não temem trazer ao mundo o seu filho e
educá-lo. Cuidado análogo deve ser reservado à vida provada pela marginalização
ou pelo sofrimento, de forma particular nas suas etapas finais.
88. Tudo isto comporta uma obra educativa paciente e corajosa, que estimule
todos e cada um a carregar os fardos dos outros (cf. Gl 6, 2); requer uma contínua
promoção das vocações ao serviço, particularmente entre os jovens; implica
a realização de projetos e iniciativas concretas, sólidas e inspiradas
evangelicamente. Múltiplos são os instrumentos a valorizar por um empenho
competente e sério. Relativamente às fontes da vida, sejam promovidos os
centros com os métodos naturais de regulação da fertilidade, como válida
ajuda à paternidade e maternidade responsável, na qual cada pessoa, a começar
do filho, é reconhecida e respeitada por si mesma, e cada decisão é animada e
guiada pelo critério do dom sincero de si.
Também os consultórios
matrimoniais e familiares, através da sua ação específica de consulta e
prevenção, desenvolvida à luz de uma antropologia coerente com a visão cristã
da pessoa, do casal e da sexualidade, constituem um precioso serviço para
descobrir o sentido do amor e da vida, e para apoiar e assistir cada família na
sua missão de « santuário da vida ». Ao serviço da vida nascente, estão
ainda os centros de ajuda à vida e os lares de acolhimento da vida. Graças à
sua ação, tantas mães-solteiras e casais em dificuldade readquirem razões e
convicções, e encontram assistência e apoio para superar contrariedades e
medos no acolhimento de uma vida nascitura ou que acaba de vir à luz.
Diante da
vida condicionada por dificuldades, extravio, doença ou marginalização,
outros instrumentos — como as comunidades para a recuperação dos
toxicodependentes, os lares para abrigo de menores ou dos doentes mentais, os
centros para acolhimento e tratamento dos doentes da SIDA, as Cooperativas de
solidariedade sobretudo para inválidos — são expressões eloqüentes daquilo
que a caridade sabe inventar para dar novas razões de esperança e
possibilidades concretas de vida a cada um. Quando, depois, a existência
terrena se encaminha para o seu termo, é ainda a caridade que encontra as
modalidades mais oportunas para os idosos, sobretudo se não-autosuficientes, e
os chamados doentes terminais poderem gozar de uma assistência verdadeiramente
humana e receber respostas adequadas às suas exigências, especialmente à sua
angústia e solidão.
Nestes casos, é insubstituível o papel das famílias;
mas estas podem encontrar grande ajuda nas estruturas sociais de assistência e,
quando necessário, no recurso aos cuidados paliativos, valendo-se para o efeito
dos idôneos serviços clínicos e sociais, sejam os existentes nos edifícios públicos
de internamento e tratamento, sejam os disponíveis para apoio no domicílio. Em
particular, ocorre reconsiderar o papel dos hospitais, das clínicas e das casas
de saúde: a sua verdadeira identidade não é a de serem apenas estruturas onde
se cuida dos enfermos e doentes terminais, mas e primariamente ambientes nos
quais o sofrimento, a dor e a morte sejam reconhecidos e interpretados no seu
significado humano e especificamente cristão. De modo especial, tal identidade
deve manifestar-se clara e eficientemente nas instituições dependentes de
religiosos ou, de alguma maneira, ligadas à Igreja.
89. Estas estruturas e lugares de serviço à vida, e todas as demais
iniciativas de apoio e solidariedade, que as diversas situações poderão
sugerir em cada ocasião, precisam de ser animados por pessoas generosamente
disponíveis e profundamente conscientes de quão decisivo seja o Evangelho da
vida para o bem do indivíduo humano e da sociedade. Peculiar é a
responsabilidade confiada aos profissionais da saúde — médicos, farmacêuticos,
enfermeiros, capelães, religiosos e religiosas, administradores e voluntários:
a sua profissão pede-lhes que sejam guardiães e servidores da vida humana. No
atual contexto cultural e social, em que a ciência e a arte médica correm o
risco de extraviar-se da sua dimensão ética originária, podem ser às vezes
fortemente tentados a transformarem-se em fatores de manipulação da vida, ou
mesmo até em agentes de morte.
Perante tal tentação, a sua responsabilidade
é hoje muito maior e encontra a sua inspiração mais profunda e o apoio mais
forte precisamente na intrínseca e imprescindível dimensão ética da profissão
clínica, como já reconhecia o antigo e sempre atual juramento de Hipócrates,
segundo o qual é pedido a cada médico que se comprometa no respeito absoluto
da vida humana e da sua sacralidade. O respeito absoluto de cada vida humana
inocente exige inclusivamente o exercício da objeção de consciência frente
ao aborto provocado e à eutanásia.
O « fazer morrer » nunca pode ser
considerado um cuidado médico, nem mesmo quando a intenção fosse apenas a de
secundar um pedido do paciente: pelo contrário, é a própria negação da
profissão médica, que se define como um apaixonado e vigoroso « sim » à
vida. Também a pesquisa biomédica, campo fascinante e promissor de novos e
grandes benefícios para a humanidade, deve sempre rejeitar experiências,
investigações ou aplicações que, menosprezando a dignidade inviolável do
ser humano, deixam de estar ao serviço dos homens para se transformarem em
realidades que, parecendo socorrê-los, efetivamente os oprimem.
90. Um papel específico são chamadas a desempenhar as pessoas empenhadas no
voluntariado: oferecem um contributo precioso ao serviço da vida, quando sabem
conjugar capacidade profissional com um amor generoso e gratuito. O Evangelho da
vida impele-as a elevarem os sentimentos de simples filantropia até à altura
da caridade de Cristo; a reavivarem diariamente, por entre fadigas e cansaços,
a consciência da dignidade de cada homem; a irem à procura das carências das
pessoas, iniciando — se necessário — novos caminhos em lugares onde a
necessidade é mais urgente, e a atenção e o apoio menos consistentes. O
realismo pertinaz da caridade exige que o Evangelho da vida seja servido ainda
por meio de formas de animação social e de empenho político, que defendam e
proponham o valor da vida nas nossas sociedades cada vez mais complexas e
pluralistas. Indivíduos, famílias, grupos, entidades associativas têm a sua
responsabilidade, mesmo se a título e com método diverso, na animação social
e na elaboração de projetos culturais, econômicos, políticos e legislativos
que, no respeito de todos e segundo a lógica da convivência democrática,
contribuam para edificar uma sociedade, onde a dignidade de cada pessoa seja
reconhecida e tutelada, e a vida de todos fique tutelada e promovida. Semelhante
tarefa incumbe, de modo particular, sobre os responsáveis da vida pública.
Chamados a servir o homem e o bem comum, têm o dever de realizar opções
corajosas a favor da vida, primeiro que tudo, no âmbito das disposições
legislativas. Num regime democrático, onde as leis e as decisões se
estabelecem sobre a base do consenso de muitos, pode atenuar-se na consciência
dos indivíduos investidos de autoridade o sentido da responsabilidade pessoal.
Mas ninguém pode jamais abdicar desta responsabilidade, sobretudo quando tem um
mandato legislativo ou poder decisório que o chama a responder perante Deus, a
própria consciência e a sociedade inteira de opções eventualmente contrárias
ao verdadeiro bem comum. Se as leis não são o único instrumento para defender
a vida humana, desempenham, contudo, um papel muito importante, por vezes
determinante, na promoção de uma mentalidade e dos costumes. Afirmo, uma vez
mais, que uma norma que viola o direito natural de um inocente à vida, é
injusta e, como tal, não pode ter valor de lei. Por isso, renovo o meu veemente
apelo a todos os políticos para não promulgarem leis que, ao menosprezarem a
dignidade da pessoa, minam pela raiz a própria convivência social.
A Igreja
sabe que é difícil atuar uma defesa legal eficaz da vida no contexto das
democracias pluralistas, por causa da presença de fortes correntes culturais de
matriz diversa. Todavia, movida pela certeza de que a verdade moral não pode
deixar de ter eco no íntimo de cada consciência, ela encoraja os políticos
— a começar pelos que são cristãos — a não se renderem, mas tomarem
aquelas decisões que, tendo em conta as possibilidades concretas, levem a
restabelecer uma ordem justa na afirmação e promoção do valor da vida. Nesta
perspectiva, convém sublinhar que não basta eliminar as leis iníquas. Mas terão
de ser removidas as causas que favorecem os atentados contra a vida, sobretudo
garantindo o devido apoio à família e à maternidade: a política familiar
deve constituir o ponto fulcral e o motor de todas as políticas sociais. Para
isso, é necessário ativar iniciativas sociais e legislativas, capazes de
garantir condições de autêntica liberdade de escolha em ordem à paternidade
e à maternidade; impõe-se, além disso, reordenar as políticas do emprego, de
urbanização, da habitação, dos serviços sociais, para se conseguir
conciliar entre si os tempos do trabalho e da família, tornando possível um
efetivo cuidado das crianças e dos idosos.
91. Um capítulo importante da política em favor da vida é constituído hoje
pela problemática demográfica. As autoridades públicas têm certamente a
responsabilidade de intervir com válidas iniciativas « para orientar a
demografia da população »; 114 mas tais iniciativas devem pressupor e
respeitar sempre a responsabilidade primária e inalienável dos esposos e das
famílias, e não podem recorrer a métodos desrespeitadores da pessoa e dos
seus direitos fundamentais, a começar pelo direito à vida de todo o ser humano
inocente. Por isso, é moralmente inaceitável que, para regular a natalidade,
se encoraje ou até imponha o uso de meios como a contracepção, a esterilização
e o aborto. Bem diferentes são os caminhos para resolver o problema demográfico:
os Governos e as várias instituições internacionais devem, antes de tudo,
visar a criação de condições econômicas, sociais, médico-sanitárias e
culturais que permitam aos esposos realizarem as suas opções procriadoras, com
plena liberdade e verdadeira responsabilidade; devem esforçar-se, depois, por
« aumentar os meios e distribuir com maior justiça a riqueza, para que todos
possam participar eqüitativamente dos bens da criação. São necessárias soluções
a nível mundial, que instaurem uma verdadeira economia de comunhão e participação
de bens, tanto na ordem internacional como nacional ».115 Esta é a única
estrada que respeita a dignidade das pessoas e das famílias, como também o autêntico
patrimônio cultural dos povos. Vasto e complexo é, portanto, o serviço ao
Evangelho da vida.
Ele manifesta-se cada vez mais como âmbito precioso e favorável
para uma efetiva colaboração com os irmãos das outras Igrejas e Comunidades
eclesiais, na linha daquele ecumenismo das obras que o Concílio Vaticano II,
com autoridade, encorajou.116 Além disso, o referido serviço apresenta-se como
espaço providencial para o diálogo e colaboração com os sequazes de outras
religiões e com todos os homens de boa vontade: a defesa e a promoção da vida
não são monopólio de ninguém, mas tarefa e responsabilidade de todos. O
desafio que temos pela frente, na vigília do terceiro milênio, é árduo:
somente a cooperação concorde de todos aqueles que acreditam no valor da vida,
poderá evitar uma derrota da civilização com conseqüências imprevisíveis.
« Os filhos são bênçãos do Senhor; os frutos do ventre, um mimo do Senhor
» (Sl 127/126, 3): a família « santuário da vida » 92. No seio do « povo
da vida e pela vida », resulta decisiva a responsabilidade da família: é uma
responsabilidade que brota da própria natureza dela — uma comunidade de vida
e de amor, fundada sobre o matrimônio — e da sua missão que é « guardar,
revelar e comunicar o amor ».117 Em causa está o próprio amor de Deus, do
qual os pais são constituídos colaboradores e como que intérpretes na
transmissão da vida e na educação da mesma segundo o seu projeto de Pai.118
É, por conseguinte, o amor que se faz generosidade, acolhimento, doação: na
família, cada um é reconhecido, respeitado e honrado porque pessoa, e se alguém
está mais necessitado, maior e mais diligente é o cuidado por ele.
A família
tem a ver com os seus membros durante toda a existência de cada um, desde o
nascimento até à morte. Ela é verdadeiramente « o santuário da vida (...),
o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida
contra os múltiplos ataques a que está exposta, e pode desenvolver-se segundo
as exigências de um crescimento humano autêntico ».119 Por isso, o papel da
família é determinante e insubstituível na construção da cultura da vida.
Como igreja doméstica, a família é chamada a anunciar, celebrar e servir o
Evangelho da vida. Esta tríplice função compete primariamente aos cônjuges,
chamados a serem transmissores da vida, apoiados numa consciência sempre
renovada do sentido da geração, enquanto acontecimento onde, de modo
privilegiado, se manifesta que a vida humana é um dom recebido a fim de, por
sua vez, ser dado.
Na geração de uma nova vida, eles tomam consciência de que
o filho « se é fruto da recíproca doação de amor dos pais, é, por sua vez,
um dom para ambos: um dom que promana do dom ».120 A família cumpre a sua missão
de anunciar o Evangelho da vida, principalmente através da educação dos
filhos. Pela palavra e pelo exemplo, no relacionamento mútuo e nas opções
quotidianas, e mediante gestos e sinais concretos, os pais iniciam os seus
filhos na liberdade autêntica, que se realiza no dom sincero de si, e cultivam
neles o respeito do outro, o sentido da justiça, o acolhimento cordial, o diálogo,
o serviço generoso, a solidariedade e os demais valores que ajudam a viver a
existência como um dom.
A obra educadora dos pais cristãos deve constituir um
serviço à fé dos filhos e prestar uma ajuda para eles cumprirem a vocação
recebida de Deus. Entra na missão educadora dos pais ensinar e testemunhar aos
filhos o verdadeiro sentido do sofrimento e da morte: podê-lo-ão fazer se
souberem estar atentos a todo o sofrimento existente ao seu redor e, antes
ainda, se souberem desenvolver atitudes de solidariedade, assistência e
partilha com doentes e idosos no âmbito familiar.
93. Além disso, a família celebra o Evangelho da vida com a oração diária,
individual e familiar: nela, agradece e louva o Senhor pelo dom da vida e invoca
luz e força para enfrentar os momentos de dificuldade e sofrimento, sem nunca
perder a esperança.
Mas a celebração que dá significado a qualquer outra
forma de oração e de culto é a que se exprime na existência quotidiana da
família, quando esta é uma existência feita de amor e doação. A celebração
transforma-se assim num serviço ao Evangelho da vida, que se exprime através
da solidariedade, vivida no seio e ao redor da família como atenção
carinhosa, vigilante e cordial nas ações pequenas e humildes de cada dia. Uma
expressão particularmente significativa de solidariedade entre as famílias é
a disponibilidade para a adoção ou para o acolhimento das crianças
abandonadas pelos seus pais ou, de qualquer modo, em situação de grave
dificuldade. O verdadeiro amor paterno e materno sabe ir além dos laços da
carne e do sangue para acolher também crianças de outras famílias,
oferecendo-lhes quanto seja necessário para a sua vida e o seu pleno
desenvolvimento. Entre as formas de adoção, merece ser assinalada a adoção
à distância, que se há-de preferir sempre que o abandono tenha por único
motivo as condições de grave pobreza da família.
Na realidade, com esta espécie
de adoção é oferecida aos pais a ajuda necessária para manter e educar os próprios
filhos, sem ter de os desarraigar do seu ambiente natural. Concebida como «
determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum »,121 a
solidariedade requer ser também concretizada mediante formas de participação
social e política. conseqüentemente, servir o Evangelho da vida implica que as
famílias, nomeadamente tomando parte em apropriadas associações, se empenhem
por que as leis e as instituições do Estado não lesem de modo algum o direito
à vida, desde a sua concepção até à morte natural, mas o defendam e
promovam.
94. Um lugar especial há-de ser reconhecido aos idosos. Enquanto, nalgumas
culturas, a pessoa de mais idade permanece inserida na família com um papel
aditivo importante, noutras, ao contrário, quem chegou à velhice é sentido
como um peso inútil e fica abandonado a si mesmo: em tal contexto, pode mais
facilmente surgir a tentação de recorrer à eutanásia. A marginalização ou
mesmo a rejeição dos idosos é intolerável. A sua presença na família ou,
pelo menos, a estreita solidariedade desta com eles quando, pelo reduzido espaço
da habitação ou outros motivos, essa presença não fosse possível, é de
importância fundamental para criar um clima de intercâmbio recíproco e de
comunicação enriquecedora entre as várias idades da vida. Por isso, é
importante que se conserve, ou se restabeleça onde tal se perdeu, uma espécie
de « pacto » entre as gerações, de modo que os pais idosos, chegados ao
termo da sua caminhada, possam encontrar nos filhos aquele acolhimento e
solidariedade que lhes tinham oferecido quando estes estavam a desabrochar para
a vida: exige-o a obediência ao mandamento divino que ordena honrar o pai e a mãe
(cf. Ex 20, 12; Lv 19, 3). Mas há mais... O idoso não há-de ser considerado
apenas objeto de atenção, solidariedade e serviço. Também ele tem um valioso
contributo a prestar ao Evangelho da vida. Graças ao rico patrimônio de experiência
adquirido ao longo dos anos, o idoso pode e deve ser transmissor de sabedoria,
testemunha de esperança e de caridade. Se é verdade que « o futuro da
humanidade passa pela família »,122 tem-se de reconhecer que as atuais condições
sociais, econômicas e culturais freqüentemente tornam mais árdua e penosa a
tarefa da família ao serviço da vida.
Para poder realizar a sua vocação de
« santuário da vida », enquanto célula de uma sociedade que ama e acolhe a
vida, é necessário e urgente que a família como tal seja ajudada e apoiada.
As sociedades e os Estados devem assegurar todo o apoio necessário, mesmo econômico,
para que as famílias possam responder de forma mais humana aos próprios
problemas. Por seu lado, a Igreja deve promover incansavelmente uma pastoral
familiar capaz de ajudar cada família a redescobrir, com alegria e coragem, a
sua missão no que diz respeito ao Evangelho da vida. « Comportai-vos como
filhos da luz » (Ef 5, 8 ): para realizar uma viragem cultural 95. «
Comportai-vos como filhos da luz. (...) Procurai o que é agradável ao Senhor,
e não participeis das obras infrutuosas das trevas » (Ef 5, 8.10-11).
No
contexto social de hoje, marcado por uma luta dramática entre a « cultura da
vida » e a « cultura da morte », importa maturar um forte sentido crítico,
capaz de discernir os verdadeiros valores e as autênticas exigências. Urge uma
mobilização geral das consciências e um esforço ético comum, para se atuar
uma grande estratégia a favor da vida. Todos juntos devemos construir uma nova
cultura da vida: nova, porque em condições de enfrentar e resolver os
problemas inéditos de hoje acerca da vida do homem; nova, porque assumida com
convicção mais firme e laboriosa por todos os cristãos; nova, porque capaz de
suscitar um sério e corajoso confronto cultural com todos.
A urgência desta
viragem cultural está ligada à situação histórica que estamos a atravessar,
mas radica-se sobretudo na própria missão evangelizadora confiada à Igreja.
De fato, o Evangelho visa « transformar a partir de dentro e fazer nova a própria
humanidade »; 123 é como o fermento que leveda toda a massa (cf. Mt 13, 33) e,
como tal, é destinado a permear todas as culturas e a animá-las a partir de
dentro,124 para que exprimam a verdade integral sobre o homem e sua vida.
Tem-se
de começar por renovar a cultura da vida no seio das próprias comunidades
cristãs. Muitas vezes os crentes, mesmo até os que participam ativamente na
vida eclesial, caiem numa espécie de dissociação entre a fé cristã e as
suas exigências éticas a propósito da vida, chegando assim ao subjetivismo
moral e a certos comportamentos inaceitáveis. Devemos, pois, interrogar-nos,
com grande lucidez e coragem, acerca da cultura da vida que reina hoje entre os
indivíduos cristãos, as famílias, os grupos e as comunidades das nossas
Dioceses. Com igual clareza e decisão, teremos de individuar os passos que
somos chamados a dar para servir a vida na plenitude da sua verdade. Ao mesmo
tempo, devemos promover um confronto sério e profundo com todos, inclusive com
os não crentes, sobre os problemas fundamentais da vida humana, tanto nos
lugares da elaboração do pensamento, como nos diversos âmbitos profissionais
e nas situações onde se desenrola diariamente a existência de cada um.
96. O primeiro e fundamental passo para realizar esta viragem cultural consiste
na formação da consciência moral acerca do valor incomensurável e inviolável
de cada vida humana. Suma importância tem aqui a descoberta do nexo indivisível
entre vida e liberdade. São bens inseparáveis: quando um é violado, o outro
acaba por o ser também. Não há liberdade verdadeira, onde a vida não é
acolhida nem amada; nem há vida plena senão na liberdade.
Ambas as realidades
têm, ainda, um peculiar e natural ponto de referência que as une
indissoluvelmente: a vocação ao amor. Este, enquanto sincero dom de si,125 é
o sentido mais verdadeiro da vida e da liberdade da pessoa. Na formação da
consciência, igualmente decisiva é a descoberta do laço constitutivo que une
a liberdade à verdade. Como disse já várias vezes, o desarraigar a liberdade
da verdade objetiva torna impossível fundar os direitos da pessoa sobre uma
base racional sólida, e cria as premissas para se afirmar, na sociedade, o arbítrio
desenfreado dos indivíduos ou o totalitarismo repressivo do poder público.126
Então é essencial que o homem reconheça a evidência primordial da sua condição
de criatura que recebe de Deus o ser e a vida como dom e tarefa: só admitindo
esta inata dependência no seu ser, pode o homem realizar em plenitude a vida e
a liberdade própria e, simultaneamente, respeitar em toda a sua profundidade a
vida e a liberdade alheia. É sobretudo aqui que se manifesta como, « no centro
de cada cultura, está o comportamento que o homem assume diante do mistério
maior: o mistério de Deus ».127 Quando se nega Deus e se vive como se Ele não
existisse ou de qualquer modo não se tem em conta os seus mandamentos, então
facilmente se acaba por negar ou comprometer também a dignidade da pessoa
humana e a inviolabilidade da sua vida.
97. À formação da consciência está estritamente ligada a obra educativa,
que ajuda o homem a ser cada vez mais homem, introdu-lo sempre mais
profundamente na verdade, orienta-o para um crescente respeito da vida, forma-o
nas justas relações entre as pessoas. De modo particular, é necessário
educar para o valor da vida,a começar das suas próprias raízes. É uma ilusão
pensar que se pode construir uma verdadeira cultura da vida humana, se não se
ajudam os jovens a compreender e a viver a sexualidade, o amor e a existência
inteira no seu significado verdadeiro e na sua íntima correlação. A
sexualidade, riqueza da pessoa toda, « manifesta o seu significado íntimo ao
levar a pessoa ao dom de si no amor ».128 A banalização da sexualidade
conta-se entre os principais fatores que estão na origem do desprezo pela vida
nascente: só um amor verdadeiro sabe defender a vida.
Não é possível, pois,
eximir-nos de oferecer, sobretudo aos adolescentes e aos jovens, uma autêntica
educação da sexualidade e do amor, educação essa que requer a formação
para a castidade, como virtude que favorece a maturidade da pessoa e a torna
capaz de respeitar o significado « esponsal » do corpo. A obra de educação
para a vida comporta a formação dos cônjuges sobre a procriação responsável.
No seu verdadeiro significado, esta exige que os esposos sejam dóceis ao
chamamento do Senhor e vivam como fiéis intérpretes do seu desígnio: este
cumpre-se com a generosa abertura da família a novas vidas, permanecendo em
atitude de acolhimento e de serviço à vida, mesmo quando os cônjuges, por sérios
motivos e no respeito da lei moral, decidem evitar, com ou sem limites de tempo,
um novo nascimento. A lei moral obriga-os, em qualquer caso, a dominar as tendências
do instinto e das paixões e a respeitar as leis biológicas inscritas na pessoa
de ambos.
É precisamente este respeito que torna legítimo, ao serviço da
procriação responsável, o recurso aos métodos naturais de regulação da
fertilidade: estes têm-se aperfeiçoado progressivamente sob o ponto de vista
científico e oferecem possibilidades concretas para decisões de harmonia com
os valores morais. Uma honesta ponderação dos resultados conseguidos deveria
fazer ruir preconceitos ainda demasiado difusos e convencer os cônjuges, bem
como os profissionais da saúde e da assistência social, sobre a importância
de uma adequada formação a tal respeito. A Igreja está agradecida àqueles
que, com sacrifício pessoal e dedicação freqüentemente ignorada, se empenham
na pesquisa e na difusão de tais métodos, promovendo ao mesmo tempo uma educação
dos valores morais que o seu uso supõe. A obra educativa não pode deixar de
tomar em consideração, ainda, o sofrimento e a morte.
Na realidade, ambos
fazem parte da experiência humana, e é vão, para além de ilusório, procurá-los
reprimir ou ignorar. Ao contrário, cada um deve ser ajudado a compreender, na
concreta e dura realidade, o seu mistério profundo. Também a dor e o
sofrimento têm um sentido e um valor, quando são vividos em estreita ligação
com o amor recebido e dado. Nesta perspectiva, quis que se celebrasse anualmente
o Dia Mundial do Doente, fazendo ressaltar « a índole salvífica da oferta do
sofrimento, que, vivido em comunhão com Cristo, pertence à essência mesma da
redenção ».129 Até a morte, aliás, não é de forma alguma aventura sem
esperança: é a porta da existência que se abre de par em par à eternidade e,
para aqueles que a vivem em Cristo, é experiência de participação no mistério
da sua morte e ressurreição.
98. Em resumo, podemos dizer que a viragem cultural, aqui desejada, exige de
todos a coragem de assumir um novo estilo de vida que se exprime colocando, no
fundamento das decisões concretas — a nível pessoal, familiar, social e
internacional —, uma justa escala dos valores: o primado do ser sobre o
ter,130 da pessoa sobre as coisas.131 Este novo estilo de vida implica também a
passagem da indiferença ao interesse pelo outro, a passagem da recusa ao seu
acolhimento: os outros não são concorrentes de quem temos de nos defender, mas
irmãos e irmãs de quem devemos ser solidários; hão-de ser amados por si
mesmos; enriquecem-nos pela sua própria presença. Na mobilização por um nova
cultura da vida, que ninguém se sinta excluído: todos têm um papel importante
a desempenhar. Ao lado da tarefa das famílias, é particularmente valiosa a
missão dos professores e dos educadores. Deles está em larga medida dependente
a possibilidade de os jovens, formados para uma autêntica liberdade, saberem
preservar dentro de si e espalhar ao seu redor ideais autênticos de vida, e
saberem crescer no respeito e ao serviço de cada pessoa, em família e na
sociedade.
Também os intelectuais muito podem fazer para construir uma nova
cultura da vida humana. Responsabilidade particular cabe aos intelectuais católicos,
chamados a estarem ativamente presentes nas sedes privilegiadas da elaboração
cultural, ou seja, no mundo da escola e das universidades, nos ambientes da
investigação científica e técnica, nos lugares da criação artística e da
reflexão humanista. Alimentando o seu gênio e ação na seiva límpida do
Evangelho, devem comprometer-se ao serviço de uma nova cultura da vida, através
da produção de contributos sérios, documentados e capazes de se imporem pelos
seus méritos ao respeito e interesse de todos.
Precisamente nesta perspectiva,
instituí a Pontifícia Academia para a Vida, com a missão de « estudar,
informar e formar acerca dos principais problemas de biomedicina e de direito,
relativos à promoção e à defesa da vida, sobretudo na relação direta que
eles têm com a moral cristã e as diretrizes do Magistério da Igreja ».132 Um
contributo específico há-de vir das Universidades, em particular católicas, e
dos Centros, Institutos e Comissões de bioética. Grande e grave é a
responsabilidade dos profissionais dos mass-media, chamados a pugnarem por que
as mensagens, transmitidas com tamanha eficácia, sejam um verdadeiro contributo
para a cultura da vida. Importa, por isso, apresentar exemplos altos e nobres de
vida e dar espaço aos testemunhos positivos e por vezes heróicos de amor pelo
homem; propor, com grande respeito, os valores da sexualidade e do amor, sem
contemporizar com nada daquilo que deturpa e degrada a dignidade do homem. Na
leitura da realidade, hão-de recusar-se a pôr em destaque tudo o que possa
inspirar ou fazer crescer sentimentos ou atitudes de indiferença, desprezo ou
rejeição da vida. Na escrupulosa fidelidade à verdade dos fastos, eles são
chamados a conjugar num todo a liberdade de informação, o respeito por cada
pessoa e um profundo sentido de humanidade.
99. Nessa viragem cultural a favor da vida, as mulheres têm um espaço de
pensamento e ação singular e talvez determinante: compete a elas fazerem-se
promotoras de um « novo feminismo » que, sem cair na tentação de seguir
modelos « masculinizados », saiba reconhecer e exprimir o verdadeiro gênio
feminino em todas as manifestações da convivência civil, trabalhando pela
superação de toda a forma de discriminação, violência e exploração.
Retomando as palavras da mensagem conclusiva do Concílio Vaticano II, também
eu dirijo às mulheres este premente convite: « Reconciliai os homens com a
vida ».133 Vós sois chamadas a testemunhar o sentido do amor autêntico,
daquele dom de si e acolhimento do outro, que se realizam de modo específico na
relação conjugal, mas devem ser também a alma de qualquer outra relação
interpessoal. A experiência da maternidade proporciona-vos uma viva
sensibilidade pela outra pessoa e confere-vos, ao mesmo tempo, uma missão
particular: « A maternidade comporta uma comunhão especial com o mistério da
vida, que amadurece no seio da mulher. (...) Este modo único de contacto com o
novo homem que se está formando, cria, por sua vez, uma atitude tal para com o
homem — não só para com o próprio filho, mas para com o homem em geral —
que caracteriza profundamente toda a personalidade da mulher ».134 Com efeito,
a mãe acolhe e leva dentro de si um outro, proporciona-lhe forma de crescer no
seu seio, dá-lhe espaço, respeitando-o na sua diferença.
Deste modo, a mulher
percebe e ensina que as relações humanas são autênticas quando se abrem ao
acolhimento da outra pessoa, reconhecida e amada pela dignidade que lhe advém
do fato mesmo de ser pessoa e não de outros fatores, como a utilidade, a força,
a inteligência, a beleza, a saúde. Este é o contributo fundamental que a
Igreja e a humanidade esperam das mulheres. E é premissa insubstituível para
uma autêntica viragem cultural. Um pensamento especial quereria reservá-lo
para vós, mulheres, que recorrestes ao aborto. A Igreja está a par dos
numerosos condicionalismos que poderiam ter influído sobre a vossa decisão, e
não duvida que, em muitos casos, se tratou de uma decisão difícil, talvez
dramática. Provavelmente a ferida no vosso espírito ainda não está sarada.
Na realidade, aquilo que aconteceu, foi e permanece profundamente injusto. Mas não
vos deixeis cair no desânimo, nem percais a esperança. Sabei, antes,
compreender o que se verificou e interpretai-o em toda a sua verdade. Se não o
fizestes ainda, abri-vos com humildade e confiança ao arrependimento: o Pai de
toda a misericórdia espera-vos para vos oferecer o seu perdão e a sua paz no
sacramento da Reconciliação. Dar-vos-eis conta de que nada está perdido, e
podereis pedir perdão também ao vosso filho que agora vive no Senhor. Ajudadas
pelo conselho e pela solidariedade de pessoas amigas e competentes, podereis
contar-vos, com o vosso doloroso testemunho, entre os mais eloqüentes
defensores do direito de todos à vida. Através do vosso compromisso a favor da
vida, coroado eventualmente com o nascimento de novos filhos e exercido através
do acolhimento e atenção a quem está mais carecido de solidariedade, sereis
artífices de um novo modo de olhar a vida do homem.
100. Neste grande esforço por uma nova cultura da vida, somos sustentados e
fortalecidos pela confiança de quem sabe que o Evangelho da vida, como o Reino
de Deus, cresce e dá frutos abundantes (cf. Mc 4, 26-29). Certamente é enorme
a desproporção existente entre os meios numerosos e potentes, de que estão
dotadas as forças propulsoras da « cultura da morte », e os meios de que dispõem
os promotores de uma « cultura da vida e do amor ». Mas nós sabemos que
podemos confiar na ajuda de Deus, para Quem nada é impossível (cf. Mt 19, 26).
Com esta certeza no coração e movido de pungente solicitude pela sorte de cada
homem e mulher, repito hoje a todos aquilo que disse às famílias, empenhadas
em suas difíceis tarefas por entre as ciladas que as ameaçam: 135 é urgente
uma grande oração pela vida, que atravesse o mundo inteiro. Com iniciativas
extraordinárias e na oração habitual, de cada comunidade cristã, de cada
grupo ou associação, de cada família e do coração de cada crente eleve-se
uma súplica veemente a Deus, Criador e amante da vida.
O próprio Jesus nos
mostrou com o seu exemplo que a oração e o jejum são as armas principais e
mais eficazes contra as forças do mal (cf. Mt 4, 1-11), e ensinou aos seus discípulos
que alguns demônios só desse modo se expulsam (cf. Mc 9, 29). Então,
encontremos novamente a humildade e a coragem de orar e jejuar, para conseguir
que a força que vem do Alto faça ruir os muros de enganos e mentiras que
escondem, aos olhos de muitos dos nossos irmãos e irmãs, a natureza perversa
de comportamentos e de leis contrárias à vida, e abra os seus corações a
propósitos e desígnios inspirados na civilização da vida e do amor. «
Escrevemo-vos estas coisas para que a vossa alegria seja completa » (1 Jo 1,
4): o Evangelho da vida é para bem da cidade dos homens
101. « Escrevemo-vos estas coisas, para que a vossa alegria seja completa » (1
Jo 1, 4). A revelação do Evangelho da vida foi-nos confiada como um bem que há-de
ser comunicado a todos: para que todos os homens estejam em comunhão conosco e
com a Santíssima Trindade (cf. 1 Jo 1, 3). Nem nós poderíamos viver em
alegria plena, se não comunicássemos este Evangelho aos outros, mas o guardássemos
apenas para nós.
O Evangelho da vida não é exclusivamente para os crentes:
destina-se a todos. A questão da vida e da sua defesa e promoção não é
prerrogativa unicamente dos cristãos. Mesmo se recebe uma luz e força
extraordinária da fé, aquela pertence a cada consciência humana que aspira
pela verdade e vive atenta e apreensiva pela sorte da humanidade. Na vida,
existe seguramente um valor sagrado e religioso, mas de modo algum este
interpela apenas os crentes: trata-se, com efeito, de um valor que todo o ser
humano pode enxergar, mesmo com a luz da razão, e, por isso, diz
necessariamente respeito a todos. Por isso, a nossa ação de « povo da vida e
pela vida » pede para ser interpretada de modo justo e acolhida com simpatia.
Quando a Igreja declara que o respeito incondicional do direito à vida de toda
a pessoa inocente — desde a sua concepção até à morte natural — é um
dos pilares sobre o qual assenta toda a sociedade, ela « quer simplesmente
promover um Estado humano.
Um Estado que reconheça como seu dever primário a
defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente da mais débil
».136 O Evangelho da vida é para bem da cidade dos homens. atuar em favor da
vida é contribuir para o renovamento da sociedade, através da edificação do
bem comum. De fato, não é possível construir o bem comum sem reconhecer e
tutelar o direito à vida, sobre o qual se fundamentam e desenvolvem todos os
restantes direitos inalienáveis do ser humano. Nem pode ter sólidas bases uma
sociedade que se contradiz radicalmente, já que por um lado afirma valores como
a dignidade da pessoa, a justiça e a paz, mas por outro aceita ou tolera as
mais diversas formas de desprezo e violação da vida humana, sobretudo se débil
e marginalizada.
Só o respeito da vida pode fundar e garantir bens tão
preciosos e necessários à sociedade como a democracia e a paz. De fato, não
pode haver verdadeira democracia, se não é reconhecida a dignidade de cada
pessoa e não se respeitam os seus direitos. Nem pode haver verdadeira paz, se não
se defende e promove a vida, como recordava Paulo VI: « Todo o crime contra a
vida é um atentado contra a paz, especialmente se ele viola os costumes do povo
(...), enquanto nos lugares onde os direitos do homem são realmente professados
e publicamente reconhecidos e defendidos, a paz torna-se a atmosfera feliz e
geradora de convivência social ».137 O « povo da vida » alegra-se de poder
partilhar o seu empenho com muitos outros, de modo que seja cada vez mais
numeroso o « povo pela vida », e a nova cultura do amor e da solidariedade
possa crescer para o verdadeiro bem da cidade dos homens.
CONCLUSÃO
102. Chegados ao termo desta Encíclica, espontaneamente o olhar volta a
fixar-se no Senhor Jesus, o « Menino nascido para nós » (cf. Is 9, 5), a fim
de n-Ele contemplar « a Vida » que « se manifestou » (1 Jo 1, 2). No mistério
deste nascimento, realiza-se o encontro de Deus com o homem e tem início o
caminho do Filho de Deus sobre a terra, caminho esse que culminará com o dom da
vida na Cruz: com a sua morte, Ele vencerá a morte e tornar-Se-á para a
humanidade princípio de vida nova. Quem esteve a acolher « a vida » em nome e
proveito de todos, foi Maria, a Virgem Mãe, a qual, por isso mesmo, mantém laços
pessoais estreitíssimos com o Evangelho da vida. O consentimento de Maria, na
Anunciação, e a sua maternidade situam-se na própria fonte do mistério
daquela vida, que Cristo veio dar aos homens (cf. Jo 10, 10). Através do
acolhimento e carinho que Ela prestou à vida do Verbo feito carne, a vida do
homem foi salva da condenação à morte definitiva e eterna.
Por isso, « como
a Igreja, de que é figura, Maria é a Mãe de todos os que renascem para a
vida. Ela é verdadeiramente a Mãe da Vida que faz viver todos os homens; ao
gerar a Vida, gerou de certo modo todos aqueles que haviam de viver dessa Vida
».138 Ao contemplar a maternidade de Maria, a Igreja descobre o sentido da própria
maternidade e o modo como é chamada a exprimi-la. Ao mesmo tempo, a experiência
materna da Igreja entreabre uma perspectiva mais profunda para compreender a
experiência de Maria, qual modelo incomparável de acolhimento e cuidado da
vida. « Apareceu um grande sinal no Céu: uma mulher revestida de Sol » (Ap
12, 1): a maternidade de Maria e da Igreja
103. A relação recíproca entre Maria e o mistério da Igreja manifesta-se
claramente no « grande sinal » descrito no Apocalipse: « Apareceu um grande
sinal no céu: uma mulher revestida de Sol, tendo a Lua debaixo dos seus pés e
uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça » (12, 1). Neste sinal, a Igreja
reconhece uma imagem do próprio mistério: apesar de imersa na história, ela
está consciente de a transcender, porquanto constitui na terra « o germe e o
princípio » do Reino de Deus.139 Tal mistério, a Igreja vê-o realizado, de
modo pleno e exemplar, em Maria. É Ela a mulher gloriosa, na qual o desígnio
de Deus se pôde atuar com a máxima perfeição. Aquela « mulher revestida de
Sol » — assinala o Livro do Apocalipse — « estava grávida » (12, 2). A
Igreja está plenamente consciente de trazer em si o Salvador do mundo, Cristo
Senhor, e de ser chamada a dá-Lo ao mundo, regenerando os homens para a própria
vida de Deus.
Mas não pode esquecer que esta sua missão tornou-se possível
pela maternidade de Maria, que concebeu e deu à luz Aquele que é « Deus de
Deus », « Deus verdadeiro de Deus verdadeiro ». Maria é verdadeiramente a Mãe
de Deus, a Theotokos, em cuja maternidade é exaltada, até ao grau supremo, a
vocação à maternidade inscrita por Deus em cada mulher. Assim Maria
apresenta-se como modelo para a Igreja, chamada a ser a « nova Eva », mãe dos
crentes, mãe dos « viventes » (cf. Gn 3, 20). A maternidade espiritual da
Igreja só se realiza — também disto está ciente a Igreja — no meio das ânsias
e « dores de parto » (Ap 12, 2), isto é, em perene tensão com as forças do
mal, que continuam a sulcar o mundo e a dominar o coração dos homens, que opõem
resistência a Cristo: « N-Ele estava a Vida e a Vida era a luz dos homens; a
luz resplandece nas trevas, mas as trevas não a acolheram » (Jo 1, 4-5). À
semelhança da Igreja, também Maria teve de viver a sua maternidade sob o signo
do sofrimento: « Este Menino está aqui (...) para ser sinal de contradição;
uma espada trespassará a tua alma, a fim de se revelarem os pensamentos de
muitos corações » (Lc 2, 34-35). Nas palavras que Simeão dirige a Maria, já
no alvorecer da existência do Salvador, está sinteticamente representada
aquela rejeição de Jesus — e com Ele a rejeição de Maria —, que culmina
no Calvário. « Junto da cruz de Jesus » (Jo 19, 25), Maria participa no dom
que o Filho faz de Si mesmo: oferece Jesus, dá-O, gera-O definitivamente para nós.
O « sim » do dia da Anunciação amadurece plenamente no dia da Cruz, quando
chega para Maria o tempo de acolher e gerar como filho cada homem feito discípulo,
derramando sobre ele o amor redentor do Filho: « Então Jesus, ao ver sua mãe
e junto dela, o discípulo que Ele amava, Jesus disse a sua mãe: -Mulher, eis aí
o teu filho- » (Jo 19, 26). « O dragão deteve-se diante da mulher (...) para
lhe devorar o filho que estava para nascer » (Ap 12, 4): a vida ameaçada pelas
forças do mal
104. No Livro do Apocalipse, o « grande sinal » da « mulher » (12, 1) é
acompanhado por « outro sinal no céu »: « um grande dragão vermelho » (12,
3), que representa Satanás, potência pessoal maléfica, e conjuntamente todas
as forças do mal que agem na história e contrariam a missão da Igreja. Também
nisto, Maria ilumina a Comunidade dos Crentes: de fato, a hostilidade das forças
do mal é uma obstinada oposição que, antes de tocar os discípulos de Jesus,
se dirige contra a sua Mãe. Para salvar a vida do Filho daqueles que O temem
como se fosse uma perigosa ameaça, Maria tem de fugir com José e o Menino para
o Egito (cf. Mt 2, 13-15). Assim, Maria ajuda a Igreja a tomar consciência de
que a vida está sempre no centro de uma grande luta entre o bem e o mal, entre
a luz e as trevas. O dragão queria devorar « o filho que estava para nascer »
(Ap 12, 4), figura de Cristo, que Maria gera na « plenitude dos tempos » (Gl 4, 4) e que a Igreja deve continuamente oferecer aos homens nas sucessivas épocas
da história.
Mas é também, de algum modo, figura de cada homem, de cada criança,
sobretudo de cada criatura débil e ameaçada, porque — como recorda o Concílio
— « pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada
homem ».140 Precisamente na « carne » de cada homem, Cristo continua a
revelar-Se e a entrar em comunhão conosco, pelo que a rejeição da vida do
homem, nas suas diversas formas, é realmente rejeição de Cristo. Esta é a
verdade fascinante mas exigente, que Cristo nos manifesta e que a sua Igreja
incansavelmente propõe: « Quem receber um menino como este, em meu nome, é a
Mim que recebe » (Mt 18, 5); « Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a
um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes » (Mt 25, 40).
« Não mais haverá morte » (Ap 21, 4): o esplendor da ressurreição
105. A anunciação do anjo a Maria está inserida no meio destas expressões
tranqüilizadoras: « Não tenhas receio, Maria » e « Nada é impossível a
Deus » (Lc 1, 30.37). Na verdade, toda a existência da Virgem Mãe está
envolvida pela certeza de que Deus está com Ela e A acompanha com a sua benevolência
providente. O mesmo se passa também com a existência da Igreja que encontra «
um refúgio » (cf. Ap 12, 6) no deserto, lugar da provação mas também da
manifestação do amor de Deus pelo seu povo (cf. Os 2, 16).
Maria é uma
mensagem de viva consolação para a Igreja na sua luta contra a morte. Ao
mostrar-nos o seu Filho, assegura-nos que n-Ele as forças da morte já foram
vencidas: « Morte e vida combateram, mas o Príncipe da vida reina vivo após a
morte ».141 O Cordeiro imolado vive com os sinais da paixão, no esplendor da
ressurreição. Só Ele domina todos os acontecimentos da história: abre os
seus « selos » (cf. Ap 5, 1-10) e consolida, no tempo e para além dele, o
poder da vida sobre a morte. Na « nova Jerusalém », ou seja, no mundo novo
para o qual tende a história dos homens, « não mais haverá morte, nem
pranto, nem gritos, nem dor, por que as primeiras coisas passaram » (Ap 21, 4).
Como povo peregrino, povo da vida e pela vida, enquanto caminhamos confiantes
para « um novo céu e uma nova terra » (Ap 21, 1), voltamos o olhar para
Aquela que é para nós « sinal de esperança segura e consolação ».142
Ó Maria,
aurora do mundo novo,
Mãe dos viventes,
confiamo-Vos a causa da vida:
olhai, Mãe,
para o número sem fim
de crianças a quem é impedido nascer,
de pobres para quem se torna difícil viver,
de homens e mulheres
vítimas de inumana violência,
de idosos e doentes assassinados
pela indiferença
ou por uma presunta compaixão.
Fazei com que todos aqueles que crêem
no vosso Filho
saibam anunciar com desassombro e amor
aos homens do nosso tempo
o Evangelho da vida.
Alcançai-lhes a graça de o acolher
como um dom sempre novo,
a alegria de o celebrar com gratidão
em toda a sua existência,
e a coragem para o testemunhar
com laboriosa tenacidade,
para construírem,
juntamente com todos os homens
de boa vontade,
a civilização da verdade e do amor,
para louvor e glória de Deus Criador
e amante da vida.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 25 de Março, solenidade da Anunciação
do Senhor,
do ano 1995, décimo sétimo de Pontificado.
IOANNES PAULUS PP. II
Porque virá tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, ao sabor das paixões, amontoa- rão para si mestres, conforme suas próprias concupiscências e des- viarão os ouvidos da verdade, voltando às fábulas".(2Tm 4,3-4).